South America

Tempos revolucionários e colapso sistêmico

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20/4/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

Houve quem se perguntasse como seria possível que o presidente Putin cooperasse com o presidente Trump para conseguir que o grupo OPEC+ fizesse subir os preços do petróleo – quando os tais preços mais altos só ajudariam precisamente a sustentar a produção de petróleo dos EUA. De fato, era como se quisessem que o presidente Putin subscrevesse um subsídio à economia dos EUA – à custa das próprias vendas russas de petróleo e gás –, dado que a produção de petróleo de xisto dos EUA simplesmente não é economicamente viável àqueles preços. Em outras palavras, a Rússia parecia estar atacando a tiros o próprio pé.

Bem… o cálculo para Moscou, entre cortar ou não a própria produção (para ajudar Trump), jamais foi simples. Sempre foi preciso fazer difíceis considerações geopolíticas e domésticas – além das questões da própria indústria. Mas e se uma questão se impusesse sobre todas as demais?

Desde 2007, o presidente Putin vem apontado uma ameaça maior e mais grave que todas as demais, já pesando sobre o comércio global. Essa ameaça já era, então, como continua a ser, simplesmente, o dólar norte-americano.

E agora, o mesmo dólar está em crise. Falamos aqui, nem tanto da crise financeira doméstica dos EUA (embora a monetização da dívida dos EUA esteja conectada a grave ameaça ao sistema global), mas, mais, de como o sistema do comércio internacional está a ponto de explodir em pedaços, com graves consequências para todos.

Em outras palavras, Covid-19 talvez seja o gatilho, mas o problema raiz é o dólar norte-americano – como o presidente Putin vem alertando já há muito tempo.

Nas palavras de Ken Rogoff, ex-economista-chefe do FMI, agora na Universidade Harvard, “Estamos diante de um colapso no preço de uma commodity e de um colapso no comércio global diferente de tudo que temos visto desde os anos 1930”. Com certeza virá uma avalanche de crises de dívida de estados, disse ele, e “o sistema simplesmente não consegue lidar com todos esses muitos calotes e restruturações ao mesmo tempo”.

“É mais ou menos como procurar os hospitais; os hospitais conseguem lidar com determinado número de doentes Covid-19, mas não conseguem lidar com todos os doentes – ao mesmo tempo” – Rogoff acrescentou.

Mais de 90 países consultaram o FMI sobre ‘resgate’ – quase metade dos países que há no mundo –, e pelo menos 60 deles procuraram o socorro de programas do Banco Mundial. Os recursos das duas instituições somados chegam [apenas] a $1,2 trilhão”.

Apenas para deixar bem claro, essa quantia não chega nem perto de ser suficiente. Rogoff diz que $1,2 trilhão é uma gota no oceano – comparada ao que vem por aí. A saúde da economia global resume-se hoje a uma corrida entre a enxurrada de dólares que jorra para fora desse sistema ‘complexo auto-organizador’ em plena pandemia do coronavírus, versus os recursos limitados do FMI e do Banco Mundial para bombear dólares para dentro do sistema.

Simples? Basta aumentar o influxo de dólares para dentro do sistema. Mas… alto lá! Significaria os EUA proverem fluxo de dólares suficiente para atender as necessidades ‘do resto do mundo’ – ‘durante o maior colapso jamais visto desde os anos 1930’? Há pelo mundo $11,9 trilhões de dívidas dos EUA, mais os dólares necessários para financiar o dia-a-dia do comércio internacional (de modo geral mantido como moedas de reserva, nacionais e internacionais).

Mas isso é só uma fração do ‘problema’ da dívida denominada em dólares, dado que uma parte dessa dívida assume as características de uma ‘moeda’ específica usada no comércio internacional, chamada eurodólar. Na maior parte dos casos, o eurodólar apresenta-se como dólares comuns, mas o que os distingue é que são depósitos em dólares no exterior que, num certo sentido, existem fora do sistema norte-americano de regulação.

Mas os quais – na direção inversa – tornam-se as ferramentas para estender a jurisdição dos EUA (sanções do Tesouro, por exemplo) por todo o planeta, mediante o uso de dólares norte-americanos como seu meio de comércio. É o mesmo que dizer que esse gigantesco mercado de eurodólares serve aos interesses geopolíticos de Washington, ao permitir que os EUA sancionem todo o mundo. Por isso o mercado de eurodólares é uma das ferramentas principais da guerra ‘oculta’ que os EUA fazem contra China e Rússia.

Os eurodólares só ‘emergiram’ (inicialmente) na Europa depois da 2ª Guerra Mundial (ninguém sabe exatamente como) e cresceram organicamente até dimensões gigantes, com o sistema bancário europeu simplesmente criando, por via eletrônica, sempre mais e mais eurodólares. O calcanhar de Aquiles é que falta um Banco Central que forneça dólares líquidos, conforme e quando pagamentos para a esfera dos EUA são sugados para fora do sistema.

Acontece especialmente em tempos de crise, quando há corrida para o dólar interno [orig. onshore dollar]. Ah, não. Ah, sim! Esse é outro sistema com dinâmica de auto-organização que só pode ‘crescer’ sob determinadas condições, e mergulha numa dinâmica de desconstrução, se se extrai dele excesso de dólares. E agora, com a pandemia Covid-19, o mercado de eurodólares já está muito perto do pânico, à caça desesperada de dólares: dólares líquidos.

O Fed dos EUA sim, ‘ajuda’, como e quando decida fazê-lo, mas principalmente se oferecendo para trocar [ing. swap] outras moedas, por dólares; e ampliando o prazo de quitação de empréstimos de curto prazo em dólares. Mas esse tipo de ‘troca-remendo’ [ing. ‘swap bandage’] não pode, claro, estancar uma explosão total do comércio global – assim como o Fed tem ‘apoiado’ o sistema financeiro norte-americano doméstico –, injetando nele trilhões de dólares.

O presidente Putin viu, há muito tempo, o que estava acontecendo, e previu o colapso total do dólar, como resultado de o comércio mundial tornar-se grande demais e muito diversificado, para ser carregado nas costas frágeis do Fed dos EUA. E porque o mundo não está mais em condições que permitam que os EUA sancionem tudo e todos, como queiram, o quanto queiram.

E chegamos hoje – muito provavelmente – ao tal momento. Assim sendo, o colapso do preço do petróleo é uma peça de outra história muito maior. Putin – o que nem chega a ser surpreendente – cooperou com a iniciativa OPEC de Trump, já adivinhando, sem dúvida, que a tentativa de fazer subir os preços jamais ‘decolaria’. Putin talvez não deseje ver renovada a hegemonia do dólar, mas tampouco deseja que a Rússia seja vista como principal contribuinte para uma explosão global. A violência da operação para inculpar a China, no caso do coronavírus, serve como potente sinal de alerta nesse contexto.

Esse – e digo-o enfaticamente – não é ensaio sobre os mal compreendidos eurodólares. É ensaio sobre risco global real. Considerem o Oriente Médio, como exemplo. O petróleo está sendo negociado atualmente a $17 (na 6ª-feira, o WTI, West Texas Intermediate: tipo de petróleo, também chamado Texas leve doce, usado como padrão para preços). Nenhum modelo de negócio de nenhum estado produtor no Oriente Médio é viável nesse nível de preço. O ‘ponto de equilíbrio’, sem nada perder e sem nada ganhar, de um orçamento nacional, exige que o preço do petróleo seja, pelo menos, três vezes mais alto – talvez ainda mais. E isso vem depois do colapso do negócio do turismo e das viagens aéreas no Golfo. Países do norte, além do mais, estão fortemente pressionados por sanções dos EUA, e os EUA só fazem apertar o torniquete, conforme o Covid-19 ataca, em vez de relaxá-lo. Líbano, Jordânia, Síria – e Iraque. Todos têm modelo nacional de negócios completamente exaurido. Todos precisam de resgate.

E nesse quadro sombrio, o coronavírus atacou precisamente aquela classe de trabalhadores expatriados e migrantes que sustenta o ‘modo de vida’ no Golfo e aquele modelo de negócios. ONGs vasculham atualmente os Emirados Árabes Unidos à procura de prédios abandonados, e o Bahrain está redirecionando escolas sem aulas para usar como moradia para trabalhadores migrantes, que têm de ser retirados das acomodações lotadas, nas quais, numa única peça minúscula, em camas improvisadas, dormem uma dúzia de trabalhadores.

O vírus também se disseminou para distritos comerciais em cidades densamente povoadas, onde muitos expatriados partilham acomodações, para economizar no aluguel. Muitos perderam empregos e lutam para sobreviver. As autoridades estão tentando deportar os migrantes de volta ao local de origem; mas Paquistão e Índia já se recusaram a conceder-lhes entrada automática. Essas vítimas perderam o meio que tinham para prover o próprio sustento e agora perdem a última chance de escapar da miséria absoluta.

Sejamos claros: as elites do Golfo não estão a salvo do Covid-19. A família al-Saud foi especialmente atingida pelo que às vezes chamam de “o vírus xiita”. A situação vai-se tornando mais explosiva a cada dia. As economias do Golfo são mantidas à tona por trabalhadores expatriados, migrantes e servidores domésticos, e o coronavírus abalou os pilares daquelas economias.

O estado depende muito do setor financeiro no Golfo, e isso torna as instituições financeiras especialmente vulneráveis, porque a proporção de empréstimos que os bancos locais concedem ao governo ou a entidades relacionadas com o governo só fez crescer desde 2009. Com as autoridades cada vez mais dependentes dessas instituições, as economias do Golfo provar-se-ão cada vez mais vulneráveis ao estresse do eurodólar – se não vierem do Fed enormes ‘resgates’.

O impacto global do Covid-19 está só começando, mas uma coisa já é abundantemente clara: os estados do Oriente Médio precisarão de muito dinheiro para gastar apenas para barrar a desordem social. Colapso econômico é mais do que só econômico. Rapidamente leva a colapso social que envolve saques, violência generalizada, fraude e fúria popular contra as autoridades. O comércio global será duramente atingido, e as importações dos EUA desabarão, o que põe em risco um dos principais canais de liquidez do EUA-dólar, para dentro do sistema eurodólar.

Esse medo de uma destruição dinâmica sistêmica do sistema de comércio levou o BIS (Bank for International Settlements [Banco de Compensações Internacionais], o Banco Central dos banqueiros centrais) a insistir que: “… a crise de hoje difere da Crise Financeira Global de 2008 e exige políticas que vão além do setor de banking para usuários finais. Esses negócios, particularmente os que tenham relação com cadeias globais de suprimento vivem em constante carência de capital de giro, grande parte dele em dólares. Preservar o fluxo de pagamento ao longo dessas cadeias é essencial, para evitar desastre econômico ainda maior”.

Eis um alerta realmente revolucionário. O Banco de Compensações Internacionais está dizendo que, a menos que o Fed disponibilize resgates e capital de giro em escala massiva – de alto a baixo e através da pirâmide de suprimento até as mais simples empresas individuais –, não será possível evitar o colapso do comércio. O que aqui está declarada é uma clara preocupação: quando vários sistemas dinâmicos complexos começam a se degradar, eles podem, e frequentemente é o que acontece, entrar numa espiral de retroalimentação.

Pode haver acordo no G7 sobre o princípio de uma moratória limitada da dívida a ser oferecida a economias em apuros, mas uma abordagem que vá à raiz da questão – na linha do que o BIS comenta – parece estar sendo bloqueada por Mnuchin, secretário do Tesouro dos EUA (os EUA têm direito de veto no FMI, por causa de sua quota): Mnuchin não oferecerá mais dinheiro dos EUA ao FMI; ele prefere manter o EUA-Fed à frente e no centro do processo de implementação da liquidez do EUA-dólar.

Em outras palavras, Trump quer manter intactos os andaimes da ‘guerra’ ‘oculta’ de sanções e tarifas contra China e Rússia, baseada no dólar. Quer que o Fed consiga determinar quem ganha e quem não ganha ajuda em qualquer tipo de ‘implantação de liquidez’. Quer continuar a poder aplicar sanções contra quem bem entenda. E quer manter o dólar como marca externa, a maior possível.

Aqui, afinal, está o xis da queixa de Putin: “No fundo, o sistema eurodólar é baseado em usar a moeda nacional de um único país, os EUA, como moeda global de reserva. Significa que o mundo está preso a uma moeda que o mundo não pode criar conforme necessite”.

Quando acontece uma crise, como no presente, todos, no sistema eurodólar dão-se conta, repentinamente, de que não conseguem criar dólares fiat, e têm de se apoiar no que exista nas reservas de moeda estrangeira, ou em linhas de ‘troca’ [ing. ‘swap lines’]. Obviamente os EUA, assim, garantem para si poder e privilégio enormes.

Mas mais do que sujeitar o mundo à hegemonia geopolítica de Washington, quem apontou o item crucial foi o professor Rogoff: “Estamos diante de um colapso no preço de uma commodity e de um colapso no comércio global diferente de tudo que vimos desde os anos 1930. Com certeza virá uma avalanche de crises de dívida de estados, disse ele, e “o sistema simplesmente não consegue lidar com todos esses muitos calotes e restruturações ao mesmo tempo”.

Simplesmente está além das capacidades do EUA-Fed e do Tesouro dos EUA, e muito além. O Fed já trabalha para duplo-monetizar o total da dívida emitida do Tesouro dos EUA. A tarefa global o esmagará – sob uma avalanche de dinheiro impresso.

Será então que Mnuchin acredita nessa narrativa, sua e de Trump, de que o vírus logo ‘partirá’, e a economia rapidamente voltará a andar nos trilhos? Se é assim, e se acontecer de o vírus não ‘partir’, nesse caso a posição de Mnuchin anuncia um próximo e trágico fracasso. E com mais e mais massiva emissão de dinheiro, virá também o colapso na confiança no dólar. (O presidente Putin veria comprovada sua tese, mas certamente não quererá comprovação que lhe venha de modo tão destrutivo).

Numa esfera paralela, o suplício do comércio global aparece espelhado no microcosmo, no suplício dos estados da União Europeia, como a Itália, cujas economias também foram dizimadas pelo Covid-19. Esses estados também, estão amarradas a uma moeda – o euro – que Itália e demais países não podem criar se necessário.

Com essa crise que atinge a Europa, todo o sistema do Euro está conhecendo o que significa não ter capacidade para criar a própria moeda fiat e ficar totalmente sujeitado a um corpo não estatutário, o Eurogrupo, o qual – como faz Mnuchin – simplesmente diz ‘não’ a qualquer abordagem semelhante à do BIS.

Mais uma vez, a questão é a escala: não se trata de business como sempre, como em alguma erupção neo-‘grega’, a ser tratada com ‘disciplina’ da União Europeia. Essa crise é muito, muito, muito maior que aquela. A carência-ausência de instrumentos monetários – em crise – pode tornar-se risco existencial.

Alguma musa poderia fazer Mnuchin e o Eurogrupo lembrarem-se da Monetary History de Alexander del Mar, 1899, na qual o autor observa o modo como as manobras da Coroa Britânica, tentando limitar as exportações de ouro e prata (i.e. dinheiro) para suas colônias norte-americanas, levaram a ‘guerra’ da Coroa contra os instrumentos monetários em papel – Bills of Credit [Notas de Crédito] – emitidas pelas Assembleias Revolucionárias de Massachusetts e Philadelphia, para compensar o regime de fome de moeda imposto pelos britânicos.

Por fim, não restou outra saída aos colonos desesperados: foram forçados a “defender o próprio sistema monetário. Assim, as Notas de Crédito daquela era (…) foram as verdadeiras bandeiras da Revolução [Americana]. Foram mais que isso. Foram a própria Revolução!”

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