South America

Julgamento de Julian Assange: caiu a máscara do Império

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18/9/2020, Pepe Escobar, Asia Times 

O conceito de “História em construção” foi levado a extremos, no que tenha a ver com o extraordinário serviço público que nos presta Craig Murray, historiador, ex-diplomata do Reino Unido e ativista de direitos humanos.

Murray – literalmente e em nível global – está agora na posição de nosso homem na galeria pública, e vai documentando em detalhes vívidos, dolorosamente, o que pode ser definido como o julgamento do século, no que tenha a ver com a prática do jornalismo: o tribunal canguru que julga Assange em Old Bailey, Londres.

Concentremo-nos em três dos relatos de Murray essa semana – com ênfase em dois temas interligados: o que os EUA estão realmente acusando, e como a mídia-empresa ocidental ignora os procedimentos do julgamento. 

Aqui, Murray relata o exato momento em que caiu a máscara do Império, não num estampido, mas num suspiro:

“O governo dos EUA tirou as luvas na 3ª-feira, quando explicitamente declarou que todos os jornalistas são passíveis de acusação nos termos da Lei Antiespionagem [ing. “Espionage Act”, 1917), pela publicação de informação protegida por segredo ou sigilo [ing. for publishing classified information] (itálicos meus).

“Todos os jornalistas” significa todo e qualquer jornalista legítimo, seja qual for a nacionalidade, operante em seja qual for a jurisdição.  

Interpretando o argumento, Murray acrescentou, “o governo dos EUA diz agora, completamente explícito, em pleno tribunal, que esses repórteres podiam e deviam ter sido encarcerados, e que doravante o governo norte-americano agirá. O Washington Post, o New York Times e toda a “grande mídia liberal” dos EUA não estão presentes aqui para ouvir e noticiar (itálicos meus), por causa da ativa cumplicidade deles na “adulteração” de Julian Assange, até desumanizá-lo, até convertê-lo em coisa, cujo destino pode ser ignorado. São realmente tão estúpidos a ponto de não compreender que são os próximos?

Err… São.”

A questão não é os autodeclarados paladinos da “grande mídia liberal” serem estúpidos. Não estão cobrindo a farsa em Old Bailey porque são covardes. Têm de preservar aquele dito “acesso” – puro delírio! – aos intestinos do Império – o tipo de “acesso” que permitiu a Judith Miller “vender” a guerra ilegal contra o Iraque em incontáveis primeiras páginas, e permite ao super oportunista Bob Woodward, serviçal da CIA, escrever seus livros de “insider”.

Aqui, nada para ver

Antes, Murray já detalhara o modo como “a mídia hegemônica está-se fingindo de cega. Há três repórteres na galeria da imprensa, um deles interno e outro representante da National Union of Journalists, NUJ. O público continua com acesso restrito, e grandes ONGs, dentre as quais a Anistia Internacional, PEN e Repórteres Sem Fronteiras, continuam excluídas fisicamente, impedidas também de assistir online.”

Murray também detalhou como “os seis que fomos autorizados a assistir da galeria pública, vale anotar, temos de subir 132 degraus até lá, várias vezes por dia. Como sabem, meu coração não é de confiança; estou com John, pai de Julian, que tem 78 anos; e outro de nós usa um marca-passo.”

Por que, então, é nosso “homem na galeria pública”? “Não menosprezo, não, absolutamente, os esforços de outros, quando explico que me sinto obrigado a escrever o que escrevo, e com tantos detalhes, porque se não for assim, os fatos vitais básicos do mais importante julgamento desse século, e o modo como está sendo conduzido, passarão quase completamente escondidos do público. Fosse processo e julgamento genuínos, quereriam que o povo assistisse a tudo, não reduziriam ao mínimo a assistência, seja física, seja online.”

A menos que muitos em todo o mundo estejam lendo os relatos de Murray – e de bem poucos outros, mas muito menos detalhados –, aspectos imensamente importantes ficarão para sempre ignorados, além de tudo que tenha a ver com o assustador contexto do que está realmente acontecendo no coração de Londres. O fato principal, no que diga respeito a qualquer jornalismo, é que a mídia comercial ocidental ignora o fato principal.

Vejamos, por exemplo, a cobertura do Dia 9, no Reino Unido.

Nenhuma matéria no Guardian – que não pode mesmo cobrir o julgamento, dado que o jornal, por anos, só fez caluniar Julian Assange, sem qualquer limite, e demonizá-lo com fúria.  

Nada tampouco no Telegraph – íntimo do MI6 –, e apenas uma nota, da Associated Press, no Daily Mail.

Um artigo curto no Independent, mas só porque uma das testemunhas, Eric Lewis, é diretor da empresa Independent Digital News & Media Ltd, que publica o jornal.

Durante anos, o processo de degradar Julian Assange e de coisificá-lo, reduzi-lo a coisa, a ente subumano, baseou-se em repetir um punhado de mentiras, e repeti-las muito, até que se tornassem verdades. Agora, a conspiração de silêncio em torno do julgamento opera o quase milagre de expor, afinal, a verdadeira face dos “valores” liberais e da “democracia” liberal. 

Com a palavra, Daniel Ellsberg

Murray oferece contexto absolutamente essencial para o que Daniel “Papéis do Pentágono” Ellsberg expôs com muita clareza como testemunha.

Os documentos da Guerra do Afeganistão publicados por WikiLeaks foram bastante similares aos relatos que o próprio Ellsberg escreveu sobre o Vietnã. O contexto geopolítico é o mesmo: invasão e ocupação, contra os interesses da absoluta maioria dos invadidos e ocupados.

Murray, ilustrando Ellsberg, escreve que “os arquivos da guerra expuseram um padrão de crimes de guerra: tortura, assassinato e ‘esquadrões da morte’. A única diferença, desde o Vietnã, foi que aquelas práticas já estavam depois tão generalizadas, que foram declaradas Top Secret, e correspondentemente escondidas.

Esse ponto é muito importante. Todos os “Papéis do Pentágono” eram de fato Top Secret. Mas, muito importante, os papéis de WikiLeaks não eram Top Secret: na verdade, não tinham distribuição proibida. Não eram, portanto, na verdade, tão ‘sensíveis’ quanto o governo dos EUA alega hoje que seriam.  

Sobre o vídeo Collateral Murder, já lendário, Murray detalha o argumento de Ellsberg: “Ellsberg afirmou que o vídeo realmente mostrou um assassinato, incluído o metralhamento deliberado de um civil ferido e desarmado. Ninguém jamais duvidou de que foi assassinato. Toda a dúvida está no adjetivo “colateral”, que implicaria “acidental”.[1] O mais realmente chocante sobre isso foi que a reação do Pentágono àqueles crimes de guerra está conforme as “Regras de Engajamento”. Que permitiam assassinatos.”

A acusação não consegue explicar por que Julian Assange reteve nada menos que 15 mil documentos; como dedicou muito tempo na edição dos documentos que foram publicados; nem por que ambos, o Pentágono e o Departamento de Estado, recusaram-se a colaborar com WikiLeaks. Murray: “Dez anos depois, o governo dos EUA ainda não consegue apresentar o nome de um indivíduo, um, um, que fosse, que tenha sido realmente prejudicado por documentos distribuídos nos WikiLeaks.”

Prometeu Acorrentado 2.0

O presidente Trump fez duas conhecidas referência públicas a WikiLeaks: “Amo WikiLeaks” e “Sei coisa alguma sobre WikiLeaks”. Pode nada ter a ver com como, num futuro hipotético segundo mandato, o governo Trump agiria, caso Julian Assange venha a ser extraditado para os EUA. O que se sabe, sim, é as mais poderosas facções do Estado Profundo o querem “neutralizado”. Para sempre.

Senti-me obrigado a mostrar o suplício de Julian Assange como o de um “Prometheus Bound 2.0” (“Prometeu Acorrentado”, port. aqui).

Nessa dolorosa tragédia pós-moderna, a principal subtrama gira em torno de golpe mortal contra o verdadeiro jornalismo, no sentido de “dizer a verdade ao poder”.

Julian Assange continua a ser tratado como criminoso extremamente perigoso, como Stella Moris diz num tuíto.

Craig Murray entrará possivelmente para a História, como personagem central num coro muito pequeno de cidadãos que alerta para as ramificações da tragédia.

Parece também que a tragédia é como comentário a tempos passados que mostraram, diferente do poema de Blake, um Casamento de Inferno e Inferno: GGaT que se casou com OCA (Guerra Global ao Terror do governo de Bush Filho; que se casou com Operações de Contingência Além-mar do governo de Barack Obama).

Julian Assange está sendo condenado por expor crimes de guerra que o Império cometeu no Iraque e no Afeganistão. Mas no final tanto som e fúria pós-11/9 significou nada.  

Na verdade, vê-se uma metástase e o pior pesadelo do Império: a emergência de um fenomenal concorrente de duas cabeças: a parceria estratégica Rússia-China.

À espera, há um exército de futuros Assanges: “Não aqui a escuridão, neste mundo de agitadas vozes”[2] (T.S. Elliot, “Burn Norton”). *******


* Epígrafe acrescentada pelos tradutores. T.S.Eliot, “Burnt Norton” (de Quatro quartetos, trecho inicial da parte V, in Obra completa, vol. I – Poesia. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 2004).

[1] A Pragmática Linguística, que estuda “o que se faz com as palavras”, ajuda a compreender o que há de impreciso no adjetivo ‘colateral’: no contexto daquele tiroteio, o significado desse adjetivo depende necessariamente de se conhecer a intenção, o projeto, o plano, o objetivo, de quem atirou. Dado que não se pode conhecer tudo isso, o significado desse adjetivo faz uma afirmação que não pode ser demonstrada; assim sendo, a boa lógica exige que se rejeite o adjetivo, e expressamente impede que seja aceito como descritivo e factual. (NTs)]

[2] T.S. Elliot, “Burn Norton”, Quatro Quartetos. Aqui, a trad. de Maria Amélia Neto, 3ª ed. São Paulo: Ática, 1983). Outra vez, como tantas vezes acontece no caso de autores colunistas ilustrados, muito se perde na tradução. O verso em inglês é “Not here the darkness, in this twittering world” (literalmente, para leitores de inglês: “nesse mundo que chilreia [como pássaros]”. “Nada de escuridão, aqui, nesse mundo que tuíta”, afinal, bem poderia ser uma tradução atualizada para o português do Brasil, 2020 [NTs].Bereich mit Anhängen

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