23/9/2020, Pepe Escobar, Asia Times (tradução autorizada pelo autor)
Bastou um minuto para que o presidente Trump metesse um vírus na 75ª Assembleia Geral (virtual) da ONU, ao denunciar “a nação que disparou essa praga contra o mundo”.
Na sequência, tudo se foi ladeira abaixo. Apesar de a fala de Trump não passar, na essência, de conversa de campanha eleitoral, e de ele absolutamente não se preocupar com a reputação da ONU como organismo multilateral, pelo menos o quadro ficou suficientemente claro para ser visto por toda aquela sempre socialmente distante “comunidade internacional”. Aqui (em ing. e aqui em port.) a íntegra da fala do presidente Xi; e aqui (em ing. e aqui em port.) a íntegra da fala do presidente Putin, à Assembleia Geral. E eis o tabuleiro de xadrez geopolítico, outra vez: a “nação indispensável” versus a parceria estratégica Rússia-China. Ao destacar a importância da ONU, Xi não poderia ser mais explícito. Disse que nenhuma nação tem direito de controlar o destino de outras: “Muito menos se pode permitir que uma nação faça o que bem entenda, como hegemon, provocador ou patrão do mundo.” A classe governante nos EUA obviamente não deixará passar esse ato de desafio. Todo o espectro de técnicas de Guerra Híbrida continuará incansavelmente turbinado e ativado contra a China, acrescido de sinofobia rampante, mesmo se alcançar tantos territórios de Dr. Fantástico, que o único modo para realmente “conter” a China seja Guerra Quente. Infelizmente, o Pentágono está superdistendido – Síria, Irã, Venezuela, Mar do Sul da China. E não há analista que ignore as capacidades da China para ciberguerra, sistemas integrados de defesa aérea e os mísseis Dongfeng, matadores de porta-aviões. Para melhor visão do quadro todo, é sempre muito instrutivo comparar gastos militares. Ano passado, a China gastou $261 bilhões; os EUA, $732 bilhões (38% do total global). Pelo menos por enquanto, a retórica prevalece. O principal tema, martelado incessantemente, é sempre a China como ameaça existencial ao “mundo livre”, apesar das incontáveis declinações do que um dia foi o “pivô para a Ásia” de Obama que só obram para acelerar a construção de consenso a favor de nova guerra. Essa matéria do Qiao Collective identifica com clareza o processo: “Chamamos de Sinofobia, Inc. – um complexo industrial-informacional, onde dinheiro de estados ocidentais financiadores, fabricantes de bilhões de dólares em armas e think-tanks de direita convivem e operam em sintonia para inundar a mídia com mensagens segundo as quais a China seria o inimigo público número 1. Armados com dinheiro do Estado e de patrocinadores na indústria bélica, esse punhado de influentes think-tanks estão fixando os termos da Nova Guerra Fria contra a China. O mesmo ecossistema midiático que azeitou as engrenagens da guerra perpétua rumo à desastrada intervenção no Oriente Médio, está agora ocupada, construindo o consenso favorável ao conflito com a China.” A tal “margem militar de vantagem dos EUA” A demonização da China, carregada de não disfarçado racismo e do mais doentio anticomunismo, serve-se de ampla palheta multicor: Hong Kong, Xinjiang (“campos de concentração”), Tibete (“trabalho forçado”), Taiwan, “vírus chinês”; a “armadilha da dívida”, na Iniciativa Cinturão e Estrada. Paralelamente avança a guerra comercial – prova destacada de como o “socialismo com características chinesas” está derrotando o capitalismo ocidental no seu próprio jogo high-tech. Daí as sanções aplicadas a 150 empresas que produzem chips para Huawei e ZTE, ou a tentativa de quebrar o negócio da empresa TikTok nos EUA (“Mas ninguém consegue roubar o produto e convertê-lo em filhote dos EUA” – como tuitou o editor-chefe de Global Times). Com tudo isso, a SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corporation), maior empresa fabricante de chips da China, que obteve lucro de $7,5 bilhões, num recente leilão público de ações, em Xangai, pode mais cedo ou mais tarde saltar à frente dos fabricantes norte-americanos de chips. No front militar, prossegue sem alívio a “pressão máxima” sobre a borda oriental da China – da reanimação do “Quarteto” à luta para fazer avançar a estratégia do Indo-Pacífico. A Think-tankelândia é essencial para coordenar todo o processo, mediante, por exemplo, o Center for Strategic & International Studies, com “doadores entre empresas e associações comerciais” onde se reúnem suspeitos de sempre como Raytheon, Lockheed Martin, Boeing, General Dynamics e Northrop Grumman. Assim temos o que Ray McGovern descreve brilhantemente como MICIMATT – o Complexo Military-Industrial-Congressional-Intelligence-Media-Academia-Think-Tanks – acionistas controladores da empresa Sinofobia Inc. Mesmo que aconteça vitória dos Democratas em novembro, nada mudará. A cabeça do Pentágono será provavelmente Michele Flournoy, ex-sub-secretária da Defesa para Políticas (2009-2012) e co-fundadora do Center for a New American Security, muito ativo nos dois campos: “desafio chinês” e “ameaça norte-coreana”. Flournoy é empenhada militante a favor de se ampliar “a margem militar dos EUA” na Ásia. Mas o que, afinal, a China está fazendo? Principal tópico de política exterior da China é fazer avançar uma “comunidade de futuro compartilhado para a humanidade”. Está escrito na Constituição e implica que a Guerra Fria 2.0 é imposição de atores externos. As três mais altas prioridades da China pós-Covid-19 são erradicar afinal a pobreza; estabilizar o vasto mercado doméstico; e voltar a pleno vapor ao comércio/investimentos por todo o Sul Global. A China como “ameaça existencial” também aparece simbolizada pelo ímpeto para implementar um sistema de comércio e investimento não ocidental, incluindo tudo, do Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento e o Fundo da Rota da Seda até comerciar sem ter de se manter preso ao EUA-dólar.Estudo da Harvard Kennedy School tenta, pelo menos, compreender como a “resiliência autoritária” dos chineses ecoa domesticamente. O estudo descobriu que a popularidade do Partido Comunista Chinês realmente cresceu, com maior apoio popular, de 2003 a 2016, alcançando espantosos 93% de avaliações favoráveis, devidos, essencialmente, a programas de bem-estar social e à batalha contra a corrupção. Contrastando com isso, quando se tem um MICCIMAT investindo em Guerra Perpétua – ou “Guerra Longa” (terminologia do Pentágono desde 2001) – em vez de saúde, educação e melhoria na infraestrutura, o que sobra é caso clássico de rabo que abana o cachorro. Sinofobia é a via perfeita para atribuir à “ameaça existencial” que vem da China, toda a culpa pela resposta horrenda ao Covid-19, pela extinção dos pequenos negócios e pela Nova Grande Depressão que se aproxima. O processo nada tem a ver com “derrota moral” e com se queixar de que “há risco de perdermos a disputa e pôr o mundo em perigo”. O mundo não está “ameaçado”, porque pelo menos vastas porções do Sul Global estão plenamente conscientes de que a tão louvada “ordem internacional baseada em regras” não passa de eufemismo para Pax Americana – ou Excepcionalismo. Tudo que Washington projetou para o pós-2ª Guerra Mundial, Guerra Fria e “momento unilateral”, já não se aplica. Bye, bye Mackinder Como o presidente Putin várias vezes disse bem claramente, os EUA já não são “capazes para acordos”. Quanto à “ordem internacional baseada em regras”, no melhor dos casos é eufemismo para capitalismo financeiro controlado por interesses privados em escala global. A parceria estratégica Rússia-China tornou bem claro, repetidas vezes, que contra a expansão da OTAN e do Quarteto, a expansão daquela parceria repousa sobre comércio, desenvolvimento e integração diplomática em toda a Eurásia. Diferente do que se viu do século 16 até as últimas décadas do século 20, agora a iniciativa não vem o Ocidente, mas do Leste da Ásia (eis a beleza da “iniciativa” incorporada à sigla ICE). Entram corredores continentais e eixos de desenvolvimento que atravessam o Sudeste da Ásia, a Ásia Central, o Oceano Índico, o Sudoeste da Ásia e a Rússia até a Europa, combinados com uma Rota Marítima da Seda por todas as áreas costeiras do sul da Ásia. Pela primeira vez em sua história milenar, a China é capaz de dar conta de uma expansão política e econômica ultra dinâmica, por terra e por mar. Vai muito além da curta era das expedições marítimas de Zheng He[1] durante a dinastia Ming, no início do século 15. Não surpreende que o Ocidente, especialmente o Hegemon, simplesmente não consiga compreender a enormidade geopolítica disso tudo. E eis porque tanta sinofobia, tantas técnicas de Guerra Híbrida aplicadas para aniquilar a “ameaça”. No passado recente, a Eurásia foi ou colônia do Ocidente, ou domínio dos Soviéticos. Agora, está à beira de finalmente se livrar dos cenários de Mackinder, Mahan e Spykman, quando a terra central e as terras costeiras [ing. the heartland and the rimland] progressiva e inexoravelmente se integram, nos próprios termos, direto, até meados do século 21. |
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