16/11/2020, Pepe Escobar, Asia Times
Ho Chi Minh, em sua eterna morada, há de estar saboreando a novidade, com um sorrisinho celestial. O Vietnã foi anfitrião – virtual – das dez nações da ANSA (Associação das Nações do Sudeste Asiático; ing. ASEAN), plus China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia, que assinaram o acordo que cria a Parceria Econômica Regional Abrangente, PERA, no último dia da 37a Cúpula da ANSA.
Em inglês, Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), PERA em português, oito anos de preparação, reúne 30% da economia global e 2,2 bilhões de pessoas. É o primeiro marco auspicioso desses Furiosos Anos 20s, que começaram com um assassinato (do general Soleimani do Irã), seguido por pandemia global e que, agora, exibem sinais sinistros de um Grande ‘Reposicionamento’ (Great Reset).
A PERA consolida o Leste da Ásia como indiscutível principal área geoeconômica do planeta. O Século da Ásia já estava em construção, de fato, nos anos 1990s. Dentre outros asiáticos e expatriados ocidentais que o identificaram de longe, em 1997 publiquei meu livro 21: O Século da Ásia (excertos aqui.)
A PERA pode talvez forçar o Ocidente a fazer alguma lição de casa, até compreender que a única história aqui não é que a PERA “exclua os EUA”, ou que seja “controlada pela China”. A PERA é um acordo leste-asiático de parceria ampla, iniciado já pela ANSA, e debatido entre iguais desde 2012, incluindo o Japão, o qual, para todas as finalidades práticas é, ele próprio, parte do Norte Global industrializado. É o primeiro acordo comercial da história que une três potências asiáticas: China, Japão e Coreia do Sul.
Agora já se vê claramente, pelo menos em amplas partes do Leste da Ásia, que os 20 capítulos do acordo PERA reduzirão tarifas em toda a sua região, simplificarão as relações alfandegárias, com no mínimo 65% dos setores de serviços completamente abertos, com limites amplificados para propriedade de ações por estrangeiros, cadeias de suprimentos reforçadas, porque se privilegiam regras de origem comum e codificam-se novas regulações para o e-commerce.
No que tenha a ver com o que realmente importa, as empresas estarão economizando e poderão exportar para qualquer ponto de um espectro de 15 países, sem ter de se preocupar com exigências extra, específicas para cada nação. Quem fala de mercado integrado fala disso.
Quando PERA encontra ICE
O mesmo CD arranhado repetirá sem parar que a PERA facilita as “ambições geopolíticas” da China. Não é o que interessa compreender. O que interessa compreender é que a parceria PERA evoluiu como complementação natural do papel da China como principal parceiro comercial de virtualmente todos os players leste-asiáticos.
Isso nos leva ao ângulo geopolítico e geoeconômico chave: a PERA é companheira natural da Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), a qual, como estratégia de comércio/desenvolvimento sustentável cobre não só o Leste da Ásia, mas expande-se mais profundamente para a Ásia Central e Ocidental.
A análise de Global Times está correta: o Ocidente nunca parou de distorcer a ICE, sem jamais reconhecer que a iniciativa que os países ocidentais não se cansam de atacar é hoje muito popular na ampla maioria dos países percorridos pela ICE.”
A PERA dará novo foco à ICE – cujo estágio de “implementação”, segundo o cronograma oficial, só começará em 2021. Os empréstimos com baixos juros e câmbio especial oferecidos pelo Banco de Desenvolvimento da China tornar-se-ão muito mais seletivos.
Haverá ênfase muito mais reforçada na Rota da Seda da Saúde (ing. Health Silk Road) – especialmente no Sudeste Asiático. Projetos estratégicos serão prioridade: giram em torno do desenvolvimento de uma rede de corredores econômicos, zonas logísticas, centros financeiros, redes 5G, portos marítimos chaves e especialmente em curto e médio prazos, alta tecnologia aplicada a serviços de saúde pública.
As discussões que levaram ao tratado PERA finalmente assinado focaram-se num mecanismo de integração que pode facilmente ultrapassar a Organização Mundial de Saúde, caso Washington persista nos procedimentos para sabotá-la, como se viu acontecer no governo Trump.
O passo seguinte pode ser a constituição de um bloco econômico ainda mais forte que a União Europeia – não falsa possibilidade fantasiada, se se tem China, Japão, Coreia do Sul e os dez da ANSA trabalhando unidos. Geopoliticamente, o principal incentivo, além de um conjunto de adequações financeiras cogentes, será dar consistência a algo como Make Trade, Not War, Faça Comércio, Não faça Guerra.
A PERA marca o fracasso irremediável da era da Trans-Pacific Partnership (Parceria Trans-Pacífico, PTP, também chamada Acordo da Parceria Trans-Pacífico), de Obama, que foi o braço chamado “OTAN comercial” do movimento de “pivô para a Ásia” com que sonhou o Departamento de Estado. Trump detonou a PTP em 2017. A PTP nada tinha a ver com “contrabalançar” o primado da China na Ásia: sempre foi espécie de passe livre para as 600 empresas multinacionais envolvidas nas negociações. Japão e Malásia, de modo especial, perceberam tudo desde o início.
Também inevitavelmente, o acordo que levou a constituir a parceria PERA marca o irremediável fracasso da falácia do “desacoplamento” e de todas as tentativas de meter uma cunha entre a China e seus parceiros comerciais no Leste da Ásia. Todos esses players asiáticos doravante privilegiarão o comércio entre eles mesmos. Comércio com nações não asiáticas passa a ser segunda possibilidade. E toda a economia da ANSA dará plena prioridade à China.
Ainda assim, as multinacionais norte-americanas não serão isoladas, dado que podem beneficiar-se da PERA mediantes suas subsidiárias nas 15 nações-membro.
E quanto à Grande Eurásia?
Claro que não faltaria a proverbial confusão à indiana. Vozes oficiais vindas de New Delhi dizem que a parceria PERA “afetaria a sobrevivência” de indianos vulneráveis. É senha para invasão extra de produtos chineses, baratos e eficientes.
A Índia foi parte nas negociações da PERA desde o início. Afastar-se – com um “podemos voltar mais tarde” condicional – é mais um caso espetacular de autoapunhalamento pelas costas. Fato é que os fanáticos Hindutva ativos por trás do Modi-ismo apostam no cavalo errado: nos EUA e na parceria “Quad” (Quadrilateral Security Dialogue, que reúne Austrália, Índia, Japão e EUA) promovida pelos EUA, como estratégia do Indo-Pacífico, que ainda visa a conter a China e, assim, impede que se criem laços comerciais mais próximos.
Nenhum “Made in India” compensará o equívoco geoeconômico e diplomático – o qual implica, crucialmente, que a Índia afaste-se do grupo da 10 nações da ANSA. A PERA dá firmeza à China, não à China, como motor insuperável do crescimento do Leste da Ásia, em pleno processo de reposicionamento pós-Covid, das cadeias de suprimento.
Interessante agora é fazer um acompanhamento geoeconômico, para ver o que fará a Rússia. No momento, a prioridade de Moscou passa por uma luta de Sísifo: administrar o relacionamento turbulento com a Alemanha, maior parceiro importador de produtos russos.
Mas há também a parceria estratégica Rússia-China – que deve ser economicamente reforçada. O conceito de Grande Eurásia, de Moscou, implica maior envolvimento com Oriente e Ocidente, incluindo a expansão da União Econômica Eurasiana, UEE (ing. Eurasia Economic Union, EAEU), a qual mantém acordos de livre comércio com o Vietnã, por exemplo, nação da ANSA.
A Organização de Cooperação de Xangai, OCX (ing. Shanghai Cooperation Organization (SCO), não é mecanismo geoeconômico. Mas é intrigante o que o presidente Xi Jinping disse em seu importantíssimo discurso na reunião do Conselho de Chefes de Estado da Organização de Cooperação de Xangai (ing. Council of Heads of State of the SCO).
Eis o trecho chave da fala de Xi: “Devemos apoiar firmemente países relevantes, no desenvolvimento gradual, nos termos da lei, das principais agendas políticas domésticas; preservando a segurança política & a estabilidade social, e nos opor resolutamente a que forças externas interfiram – não importa sob qual pretexto – em assuntos internos dos estados-membros.”
Aparentemente isso nada teria a ver com o acordo da parceria PERA. Mas há, sim, algumas intersecções. Sem interferência de “forças externas”. É Pequim levando em consideração as necessidades de membros da OCX, de vacinas Covid-19 – o que pode ser estendido para PERA. A OCX – e também a PERA – como plataforma multilateral para que estados-membros operem como mediadores em disputas.
Todos os pontos acima têm a ver com intersecções possíveis entre ICE, UEE, OCX, PERA, BRICS+ e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, BAII (ing. Asian Infrastructure Investment Bank, AIIB), o que se traduz na integração geoeconomicamente e geopoliticamente mais densa na Ásia – e na Eurásia. Enquanto os cães da distopia ladram, a caravana asiática – e eurasiana – avança.********
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