15/2/2021, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
As elites acabaram por crer na própria narrativa – esquecendo que foi pensada como ilusão e artifício, criada para capturar a imaginação dentro de cada respectiva sociedade.
Pat Buchanan está absolutamente certo – quando diz que, em matéria de insurreições, a história depende de quem escreve a narrativa. Usualmente, é tarefa de que se encarrega a classe oligárquica (se acabarem por se impor). E posso citar alguns ‘terroristas’ que logo adiante passaram a ser cortejados como ‘estadistas’. Assim a roda do tempo gira adiante – e gira outra vez.
Claro que fixar uma narrativa – alguma realidade que não se possa desafiar, que seja dada por garantida, na qual muito se investiu, para se permitir que fracasse – não significa que uma ou outra narrativa nunca seja desafiada. Há uma antiga expressão britânica que descreve bem a experiência colonial (silenciosa) de reagir contra a ‘narrativa’ então dominante (na Irlanda e na Índia, inter alia): ‘silenciosa insolência’ [ing. ‘dumb insolence’]. Vale dizer, quando o desempenho de atos individuais de rebelião é a tal ponto custoso e inútil, que a expressão de mudo desprezo pelos ‘senhores’ já diz tudo. A ‘silenciosa insolência’ dos nativos enfurecia a classe governante britânica, porque a todo o momento a fazia lembrar-se de seu déficit de legitimidade. Gandhi elevou aos píncaros a silenciosa insolência. E sua narrativa, afinal, é a que a história mais relembra.
Com as ‘Big Tech’ globais no controle da narrativa, contudo, entramos numa ordem de coisas completamente diferente daqueles primeiros esforços britânicos para manter baixa a dissidência – como a professora Shoshana Zuboff, da Harvard Business School, anota de forma sucinta:
“Ao longo das últimas duas décadas, observamos as consequências de nossa surpreendente metamorfose, que fez de nós impérios de vigilância empoderados por arquiteturas globais de monitoramento, análise, direcionamento e predição de comportamentos – que chamei de capitalismo de vigilância. Sobre a potência de suas capacidades para vigiar e para garantir seus próprios lucros da vigilância, os novos impérios arquitetaram um golpe epistêmico fundamentalmente antidemocrático, marcado por concentrações sem precedentes de conhecimento e de poder sem qualquer transparência, que não tem de prestar contas de coisa alguma a seja quem for, que se acrescente àquele conhecimento.”
Agora, o controle da narrativa perdeu… o controle:*
“Essa é a essência do golpe epistêmico. Querem para eles a autoridade de decidir quem sabe (…) [autoridade que] agora se une à democracia sobre os direitos e princípios fundamentais que irão definir a nossa ordem social neste século. Será que o crescente reconhecimento desse outro golpe (…) afinal nos forçará a reconhecer a inconveniente verdade que veio à tona nas duas últimas décadas? Podemos ter democracia, ou podemos ter sociedade da vigilância. Mas não podemos ter ambas.” (Eu sublinhei).
Isso representa claramente uma muito diferente magnitude de ‘controle’ – e, quando aliada às técnicas de contrainsurgência do Ocidente na narrativa do ‘terrorista’, afinadas durante a “Grande Guerra ao Terrorismo” – é formidável arma para pôr fim às dissidências, seja domesticamente seja externamente.
Mas há aí uma fraqueza fundamental.
Ao se autoinvestir de tal modo, ao se afundar tão completamente numa ‘realidade particular’, o Ocidente acaba por se autoimpedir de conhecer as ‘verdades’ de outros. Sem as conhecer, não consegue erguer-se firmemente acima da platitude sem fim do discurso consensual. E por isso o Ocidente não consegue penetrar a carapaça da narrativa-bolha dominante, ou atrair a atenção das elites, tão ocupadas na gestão de sua própria versão da realidade.
A “Grande Fraqueza”? As elites acabam por acreditar na própria narrativa – esquecendo que essa narrativa foi pensada como ilusão e artifício, criada para capturar a imaginação, dentro de cada respectiva sociedade de cada respectiva elite, não de ‘outros’.
As elites perderam a habilidade para se manterem à parte. E hoje se veem elas mesmas, como os outros as veem. Deixaram-se de tal modo seduzir pela sua própria versão fantasiada do mundo, que perderam toda a capacidade para aceitar verdades diferentes. Perderam toda a capacidade para ouvir sinais. O ponto aqui é que, sem ver, sem ouvir outros estados, seus motivos e intenções, as elites imperiais acabam por desentender completamente todos os motivos e intenções que movam outros estados, o que às vezes resulta em trágico desentendimento.
Há legiões de exemplos, mas a ideia do governo Biden, de que o tempo teria congelado – no momento em que Obama deixou a Casa Branca – e de algum modo teria descongelado bem a tempo para Biden retomar a antiga era (como se o tempo tivesse sido contínuo, ininterrupto), é exemplo eloquente de alguém que passa a crer no próprio meme. E o sincero susto – e medo – que a União Europeia sentiu ao se ver descrita como “parceira não confiável” pelo ministro Lavrov de Relações Exteriores da Rússia, é apenas mais um exemplo de como e de o quanto as elites distanciaram-se do mundo real e tornaram-se cativas da própria autoimagem.
“America is back” [EUA estão de volta] para comandar e para ‘definir as regras da estrada’ para o resto do mundo é slogan que talvez tenha sido pensado para irradiar alguma força dos EUA. Na verdade, só sugere fraca compreensão das realidades a serem enfrentadas pelos EUA: as relações EUA-Europa e EUA-Ásia já se estavam tornando cada vez mais distantes, desde muito antes de Biden chegar à Casa Branca e, assim, desde antes, também, do governo Trump (propositadamente disruptivo).
Por que os EUA insistem tanto em negar tudo isso?
Por um lado, depois de 70 anos de primado global, há inevitavelmente alguma inércia que dificulta para qualquer potência dominante, ouvir, registrar e assimilar mudanças significativas do passado recente. Contudo, para os EUA, outro fator ajuda a explicar a dificuldade ‘de audição’ [orig. ‘tin ear’]: o Establishment estava obsessivamente fixado em impedir que a eleição presidencial de 2020 validasse os resultados da eleição anterior. Essa obsessão, na verdade, impôs-se a tudo mais. Nenhuma outra coisa interessava. Ouvidos quase absolutamente fechados, o necessário para impedir que se ouvisse qualquer notícia do mundo em mudança – bem ali, do lado de fora das janelas.
Não acontece só nos EUA. É fácil compreender por que a União Europeia (UE) manteve-se de tal modo surda (e cega) ao que o ministro Lavrov, de Relações Exteriores da Rússia, disse da UE que seria “parceira não confiável” (o que ela certamente estava sendo naquele momento). Como o ex-ministro de Relações Exteriores da Grécia, Yanis Varoufakis, escreveu sobre sua pessoal experiência, quando tentava que a UE ouvisse seus resumos e propostas detalhadas sobre a situação financeira da Grécia:
“Eles (o Eurogrupo) lá ficavam, muito sérios, mas sem dar nem a mínima atenção ao que eu dizia: poderia estar cantando o Hino Nacional da Suécia, que dariam ao hino a mesma nenhuma atenção que davam aos meus relatórios” – como Varoufakis contou mais tarde.
O que Varoufakis conheceu é o modus operandi padrão da UE. A UE não ‘negocia’. Miseráveis suplicantes, sejam a Grécia ou a Grã-Bretanha, são obrigados a aceitar os valores da UE – e sua ‘regras do clube’.
O Alto Representante Borrell chegou com sua longa lista de reclamações, extraídas de 27 estados (alguns dos quais têm lista histórica de reclamações contra a Rússia). Leu as exigências e com certeza esperava que Lavrov, como Varoufakis, lá ficaria sentado, calado, ouvindo reprimendas e ‘aprendendo’ sobre ‘regras do clube’, como qualquer aspirante que esperasse construir algum tipo de relação de trabalho com o ‘maior mercado consumidor do mundo’. É a cultura da UE.
Então, a famosa conferência de imprensa que se segue às reuniões, na qual a UE foi chamada de “parceira não confiável”. Quem quer que algum dia tenha assistido a uma reunião do corpo deliberativo da UE conhece o protocolo – mas deixemos que fale um ex-funcionário de alto escalão da UE:
“O Conselho trata de Chefsachen – questões de alta política, não as de baixa regulação – em sessões fechadas. Nessas, escreve Middelaar, todos os 28 chefes de governo (pre-Brexit) tratam-se entre eles pelo prenome, e muitos se veem, de repente, concordando em decisões nas quais jamais antes pensaram em concordar – antes de emergirem da sala, para uma flamejante ‘foto de família’ diante de mil repórteres reunidos para colher as notícias que lhes tragam, e cuja presença garante o ‘fracasso impossível’ do conclave (com uma única incômoda exceção), dado que todas as reuniões terminam com mensagem comum de esperança e firmeza.”
Lavrov, como herdeiro de algum ancestral ‘diamante bruto’, não soube comportar-se naquele elegante salão europeu. Ninguém chega lá e diz palavrões à UE. Ah, não!
Varoufakis explica:
“Diferente dos estados-nações que emergem como estabilizadores de conflitos entre classes e grupos sociais, a UE foi criada como cartel, com mandato para estabilizar as margens de lucro das grandes corporações da Europa Central. (Começou a existir como European Coal and Steel Community [Comunidade Europeia de Carvão e Aço]). Vista por esse prisma, a obsessiva fidelidade da EU a práticas fracassadas começa a fazer sentido. Carteis são razoavelmente bons na distribuição de lucros de monopólios entre oligarcas, mas são péssimos na distribuição de perdas”.
Nós também sabemos que, diferentes de estados limpos, cartéis resistirão contra qualquer democratização ou interferência que lhe venha do exterior e alcance o círculo fechado de tomada de decisões.
O incidente em Moscou poderia até parecer engraçado, exceto pelo fato de que o incidente destaca o modo como a contemplação do próprio umbigo de Bruxelas (que se faz à parte, em relação à Equipe Biden) produz resultado similar: perde o contato com o mundo exterior, desliga-se dele. ‘Ouve’, mas não escuta.
A estratégia hostil do Ocidente contra a Rússia, como Pepe Escobar observou (em português, aqui) nessa análise estratégica da posição da Rússia, está atrelada à noção de que a Rússia não teria a quem recorrer – e, assim, teria de se sentir satisfeita e honrada pela noção de que a UE cuidaria de estender um ‘tentáculo de polvo’ na direção à Eurásia.
Contudo, em termos realistas, com o centro de gravidade geoeconômico deslocando-se hoje para a China e a Ásia Oriental, trata-se mais de se a terra central da Eurásia Expandida, com seus 2,2 bilhões de habitantes, sente que valeria a penas estender, ela, sim, seu próprio tentáculo, na direção da EU cheia de regras.
Não é pouco: a UE reagir como serpente sibilante ao movimento de Lavrov, que devolveu a UE ao seu limitado lugar real, é uma coisa. A possibilidade objetiva de os EUA ouvirem, mas não escutarem, sobre Rússia e China, é coisa muito diferente. Não escutar, ou escutar seletivamente e concluir erradamente em tudo que diga respeito a esses dois estados alcança questões de guerra e de paz.*******
* Orig. “Narrative control has now jumped the shark”. A expressão em itálico (literalmente “pulou o tubarão”, faz referência a momentos em que roteiristas de seriados de TV que começam a perder audiência, têm de inventar ‘eventos’ completamente alucinados, na tentativa de ‘reacender’ o interesse do público. Aqui, interessante relação de ‘casos’ (ing.) [NTs].
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