South America

Sobre a criação do império norte-americano, no raiar do fim

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20/1/2021, Pepe Escobar, Asia Times

Com o Império Excepcional preparando-se para se aventurar em novo ciclo destrutivo – e autodestrutivo –, com terríveis, imprevistas consequências que reverberam em todo o mundo, agora mais do que nunca é absolutamente essencial voltar às raízes do império.

Em Tomorrow, the World: The Birth of U.S. Global Supremacy , Stephen Wertheim – Diretor Adjunto de Pesquisa e Política do Quincy Institute for Responsible Statecraft e pesquisador do Saltzman Institute of War and Peace Studies da Universidade de Columbia – dá perfeitamente conta dessa tarefa.

Nesse livro, em minuciosos detalhes, descobre-se quando, por que e especialmente quem modelou os contornos do “internacionalismo” americano, como num salão de espelhos, sempre disfarçando o real objetivo final: o Império. O livro de Wertheim foi soberbamente resenhado pelo Prof. Paul Kennedy.

Aqui nos concentraremos nas reviravoltas cruciais da trama que aconteceram ao longo de 1940. A tese principal de Wertheim é que o outono da França em 1940 – e não Pearl Harbor – foi o evento catalisador que levou à concepção do projeto completo da Hegemonia Imperial.

Não é livro sobre o complexo industrial-militar dos EUA ou sobre o funcionamento interno do capitalismo americano e do capitalismo financeiro. E é extremamente útil, pois estabelece o preâmbulo da era da Guerra Fria. Mas, acima de tudo, é história intelectual ampla, que expõe o modo como a política exterior americana foi fabricada pelos verdadeiros atores de carne e osso, os que contam: os planejadores econômicos e políticos reunidos pelo superinfluente Conselho de Relações Exteriores (CRE; ing. CFR), o núcleo conceitual da matriz imperial.

Eis o nacionalismo excepcionalista

Quem queira capturar numa só frase o impulso ‘de missão’ dos norte-americanos, ela lá está: “Os EUA nasceram de um nacionalismo excepcionalista, imaginando-se escolhidos por Deus para ocupar a vanguarda da história mundial”. Wertheim acerta em cheio, a partir de uma riqueza de fontes sobre o excepcionalismo norte-americano, especialmente Manifest Destiny: American Expansion and the Empire of the Right, de Anders Stephanson.

A ação começa no início de 1940, quando o Departamento de Estado formou um pequeno comitê consultivo em colaboração com o CRE, constituído como estado protonacional de segurança de facto.

O projeto de planejamento do CRE no pós-guerra era conhecido como Estudos de Guerra e Paz, financiado pela Fundação Rockefeller e exibindo uma seção transversal da elite americana, dividida em quatro grupos.

Daqueles, os mais importantes foram o Grupo Econômico e Financeiro, liderado pelo “Keynes norte-americano”, o economista de Harvard Alvin Hansen; e o Grupo Político, liderado pelo empresário Whitney Shepardson. Os planejadores do CRE foram inevitavelmente transpostos para o núcleo do comitê oficial de planejamento do pós-guerra criado depois de Pearl Harbor.

Um ponto crucial: o Grupo de Armamento era liderado por ninguém menos que Allen Dulles, então simples advogado de empresas, anos antes de se tornar o nefasto e onisciente mestre da CIA, totalmente desconstruído por David Talbot em The Devil’s Chessboard.

Wertheim detalha as fascinantes escaramuças intelectuais ao longo dos primeiros oito meses da Segunda Guerra Mundial, quando o consenso predominante entre os planejadores era concentrarem-se exclusivamente no Hemisfério Ocidental, antes de cederem à tentação de aventuras para “equilíbrio de poder” no exterior (os europeus que combatam; enquanto ‘nós’ lucramos).

A queda da França em maio-junho de 1940 – o principal exército do mundo derretido em cinco semanas – foi o que realmente mudou o jogo, muito mais que Pearl Harbor, 18 meses adiante. Essa foi a interpretação dos planejadores: o totalitarismo controlaria a Eurásia, se a Grã-Bretanha fosse o dominó seguinte a cair.

Wertheim acerta em cheio ao definir a “ameaça” que crescia aos olhos dos planejadores: a dominação pelo Eixo, que impediria os EUA de “conduzir a história mundial. Tal ameaça mostrou-se inaceitável para as elites norte-americanas”. Isso levou a uma definição ampliada de segurança nacional: os EUA não podiam deixar-se “isolar” no Hemisfério Ocidental. O caminho à frente era inevitável: moldar a ordem mundial em termos de potência militar suprema.

Assim, foi a perspectiva de uma ordem mundial modelada pelos nazistas – não algum risco à segurança dos EUA – que moveu as elites da política exterior no verão de 1940 para construir as bases intelectuais da hegemonia global dos EUA.

Claro que havia um componente de “sublime ideal”: sem a hegemonia, os EUA não conseguiriam cumpria a missão a eles atribuída por Deus, de conduzir o mundo para um futuro melhor. Mas havia também uma questão prática, menos elevada e muito mais urgente: aquela ordem mundial comandada pelos nazistas poderia ser fechada para o comércio liberal dos EUA.

Mesmo quando, depois, as marés da guerra mudaram, o argumento intervencionista acabou prevalecendo: afinal, toda a Eurásia poderia (itálico no livro), eventualmente, cair sob o totalitarismo.

Trata-se sempre da “ordem mundial”

Inicialmente, a queda da França forçou os planejadores de Roosevelt a se concentrarem em uma área hegemônica mínima. Assim, no meio do verão de 1940, os grupos CRE, mais os militares, surgiram com a chamada “teoria do 1/4 de esfera [do planeta]” [ing. quarter sphere], do Canadá até o norte da América do Sul.

Ainda assumiam que o Eixo dominaria a Europa e partes do Oriente Médio e do Norte da África. Como observa Wertheim, “os intervencionistas americanos muitas vezes retratavam o ditador alemão como mestre da arte de modelar o Estado, presciente, inteligente e ousado”.

Então, a pedido do Departamento de Estado, o crucial Grupo Econômico e Financeiro do CRE trabalhou febrilmente de agosto a outubro para projetar o passo seguinte: integrar o Hemisfério Ocidental e a Bacia do Pacífico.

Esse foco eurocêntrico era totalmente míope (a propósito, a Ásia praticamente nem é registrada na narrativa de Wertheim). Os planejadores assumiram que o Japão – mesmo rivalizando com os EUA, e já tendo então invadido a China continental há três anos – poderia de alguma forma ser incorporado, ou subornado para constituir uma área não nazista.

Então, finalmente, ganharam a sorte grande: juntar-se ao Hemisfério Ocidental, ao império britânico e à bacia do Pacífico em uma chamada “grande área residual”: ou seja, todo o mundo não dominado pelos nazistas, exceto a URSS.

Aqueles planejadores descobriram que se a Alemanha nazista dominasse a Europa, os EUA teriam de dominar todo o restante do mundo (itálicos meus) – conclusão lógica a que chegaram, baseada nas suas suposições iniciais.

Foi quando nasceu a política exterior norte-americana para os 80 anos seguintes: os EUA teriam de exercer “poder inquestionável”, como declarado na “recomendação” dos planejadores do CRE ao Departamento de Estado, entregue dia 19 de outubro, em memorando intitulado “Needs of Future United States Foreign Policy” (Necessidades da futura política exterior dos EUA).

Essa “Grande Área” foi a criação do Grupo Econômico e Financeiro do CRE. Mas não impressionou o Grupo Político. A Grande Área implicava acordo de paz pós-guerra, que seria na verdade uma Guerra Fria entre a Alemanha e a Anglo-América. Não era acordo suficientemente bom.

Mas como vender o domínio total à opinião pública americana, sem que a ‘solução’ soasse tão “imperialista” quanto o que o Eixo fazia na Europa e na Ásia? Era problema monstro, em termos de Relações Públicas!

No final, as elites norte-americanas sempre voltaram à mesma pedra fundamental do excepcionalismo norte-americano: se viesse a haver supremacia do Eixo na Europa e na Ásia, o destino manifesto dos EUA – definir o caminho adiante para toda a história mundial – ficaria impedido.

Como disse Walter Lippmann, de forma sucinta e memorável: “Nossa ordem é a nova ordem. Foi para fundar esta ordem e para desenvolvê-la, que nossos pais fundadores vieram para cá. Nesta ordem, nós existimos. Só nesta ordem podemos viver”.

Assim se estabeleceria o padrão para os 80 anos seguintes. Roosevelt, apenas alguns dias após ter sido eleito para o terceiro mandato, declarou que os Estados Unidos  “verdadeira e fundamentalmente… são uma nova ordem”.

Causa arrepios lembrar que há 30 anos, ainda antes de desencadear a primeira operação “Choque e Pavor” contra o Iraque, Papa Bush definiu a operação como o cadinho de uma “nova ordem mundial” (o discurso foi proferido exatamente 11 anos antes do 11 de setembro).

Henry Kissinger, há seis décadas, só faz ‘marketar’ essa “ordem mundial”. O mantra número um da política exterior dos EUA é a “ordem internacional baseada em regras”. Quais regras? Aquelas, claro, as regras estabelecidas unilateralmente pelo Hegemon, no final da Segunda Guerra Mundial.

“Século Norte-americano” redux

O que saiu daquela orgia de planejamento político de 1940 foi encapsulado num mantra sucinto, exposto no lendário ensaio de 17 de fevereiro de 1941, publicado na revista Life, pelo magnata da mídia Henry Luce: “Século norte-americano”.

Apenas seis meses antes, os planejadores davam-se por satisfeitos, com ter papel hemisférico, num futuro mundial que seria liderado pelo Eixo. Em fevereiro de 1941, já partiam para a degola: “oportunidade completa de liderança”, nas palavras de Luce.

No início de 1941, meses antes de Pearl Harbor, o século norte-americano já se tornara tema da mídia mainstream – e de lá nunca mais saiu.

Assim se selou a primazia da Política da Força, Política da Grande Potência (ing. Power Politics). Se os interesses americanos seriam globais, global seria também o poder político e militar dos EUA.

Luce usou até a terminologia do Terceiro Reich: “Tiranias podem exigir grande quantidade de espaço vital.[1] Mas a Liberdade exige e exigirá ainda muito mais espaço vital que a tirania”. A ambição sem limites de Hitler foi derrotada pela ambição sem limites das elites norte-americanas.

Isso, até agora. Hoje é como se o império estivesse entrando em seu momento James Gagney, de “Mamãe, eu consegui! No topo do mundo!” – apodrecendo de dentro para fora, 11/9 funde-se ao 6/1, agora em guerra contra o “terrorismo doméstico”. E sempre alimentando sonhos tóxicos de impor sua “liderança” global incontestável.*******


[1] Al. Lebensraum, “espaço vital”. Da Wikipedia: “Adolf Hitler considerava que a “raça ariana” (segundo ele, superior) deveria permanecer unida, e para uni-la ao Império Alemão deveria ter território maior. Esse território era historicamente berço do povo germânico, mas foi dividido: o “Espaço Vital Alemão”. Tal argumento foi amplamente discutido em Mein Kampf [Minha luta], de Hitler, e utilizado como discurso de justificativa da marcha alemã sobre a Europa a começar pela anexação da Áustria, que antes pertencia à Confederação Germânica e antes disso ao Sacro Império Romano-Germânico.” [NTs] 

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