South America

Bolívia na encruzilhada: sucesso continuado ou rendição à hegemonia norte-americana

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20/10/2019, Peter Koenig,*The Saker Blog

“Não quero ser o melhor presidente da história da Bolívia, quero ser o presidente da melhor Bolívia da história.” Assim disse Evo Morales num comício pré-eleitoral, poucos dias antes das eleições de hoje, 20/10/2019. No mesmo comício, Evo disse que nunca, desde que o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) em novembro de 2017 rejeitou recurso da oposição contra sua candidatura a um 4º mandado presidencial e aprovou seu nome como candidato às eleições de 20/10, a interferência dos EUA diária, por todas as vias, ganhou impulso extra.

Os EUA não pararam de tentar desinformar os eleitores bolivianos com propaganda falsa e fazendo as promessas mais delirantes à população. Por exemplo, o pessoal da Embaixada dos EUA – talvez 5ª-Colunistas a soldo dos EUA – prometeram à população da região pobre dos Yungas [aimará, “Terras Mornas” (Brittanica, ing.)] da Bolívia, estradas novas e asfaltadas se não apoiassem Evo Morales nas eleições seguintes. Também circulam mentiras flagrantes, de que Evo e família teriam roubado centenas de milhões de dólares que teriam sido depositados numa conta secreta no “Banco Vaticano”. As mesmas mentiras estão sendo disseminadas sobre Nicolas Maduro, a família Castro, Kim Jong-Un da República Popular Democrática da Coreia, líderes iranianos e sírios e outros que se opõem aos ditames de Washington [também no Brasil circularam as mesmas fake-news, contra o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva (NTs)].

O Ministro Boliviano da Presidência, Juan Ramón Quintara, referindo-se às tentativas dos EUA de sabotar as eleições, disse há alguns dias num canal de TV pública boliviana que “Não passa um dia em que os EUA não interfiram nos assuntos políticos internos da Bolívia.” E acrescentou, alertando os compatriotas: “Nos últimos 50 anos os EUA meteram suas mãos sujas em todas as eleições bolivianas. Hoje, a interferência é pior que nunca antes. Por essa razão, hermanos bolivianos, mantenham-se atentos e não deixem que o voto de vocês seja sequestrado por esses atores estrangeiros.”

Essa interferência é desrespeito total à lei internacional, à diplomacia internacional e à ética. Mas o que esperar do único estado realmente bandido de toda nossa “Mãe Terra”? Para nem falar da corrupção flagrante, aberrante e impossível de esconder, sempre ativa no atual e em todos os governos anteriores dos EUA pelo menos nos últimos 100 anos, e a interferência constante do Pentágono e da Casa Branca em todas as eleições em todo o mundo. De estranhar, mesmo, é que alguém ainda se deixe enganar por essas mentiras – disseminadas por um imperador apanhado nas vascas da agonia do próprio império.

Evo Morales concorre pela 4ª vez com seu Álvaro Marcelo García Linera, do Partido Movimento ao Socialismo, MAS, à presidência e à vice-presidência da Bolívia. 

O MAS foi criado em 1998 por Evo Morales. Segundo pesquisas recentes, Evo tem pouco menos de 40% das intenções de voto, contra cerca de 22% de Carlos Mesa, o mais forte oponente, em segunda tentativa, do Partido Comunidade Cívica, de direita.

Segundo a Constituição Boliviana, elege-se em primeiro turno o candidato que alcançar 40% dos votos. Evo tem chance de vencer a eleição no primeiro turno. Mas se receber menos de 40% dos votos, a eleição será decidida num segundo turno eleitoral. De modo geral, é onde mora o perigo – porque é onde entra com mais ferocidade a interferência dos EUA em todas as eleições em todo o planeta, quando interessa aos norte-americanos derrotar o candidato que as urnas ‘ameacem’ eleger. 

Tradicionalmente, Washington gasta milhões (quantias jamais conhecidas com precisão) para caluniar o candidato preferido dos eleitores e em promover o candidato “dos EUA”. E muito frequentemente os EUA elegem o candidato “deles”, não o candidato dos eleitores locais. Há muitos exemplos.

Um dos mais escandalosos foi a eleição presidencial de 2016 no Peru, quando, no primeiro turno, o candidato que aparecia em 1º lugar nas pesquisas, do Partido Socialista e provável vencedor, apareceu, ao final do 1º turno, em 3º lugar. E o candidato apoiado pelos EUA lá estava no 2º lugar no 1º turno, e como “vencedor” no 2º turno. Hoje, esse presidente “eleito” está em prisão domiciliar, à espera de ser julgado por corrupção, ligado a negócios ilegais com os EUA.

Se Evo Morales não alcançar os 40% necessários para vencer em 1º turno, por artes da interferência dos EUA, será a primeira vez nas quatro eleições em que concorreu à presidência em que terá de enfrentar um 2º turno. Em 2009 e 2018, foi eleito em 1º turno, com avalanche de votos, 61% e 64% respectivamente.

AlJazeera noticia de La Paz, hoje, nas primeiras horas da manhã do dia da eleição, que “milhões de bolivianos devem votar hoje em clima de incerteza, com o presidente Evo Morales buscando um controverso quarto mandato.”

Por que controverso? – Porque a Constituição de 2009 permite que o presidente tenha apenas dois mandatos. Mas Evo argumentou que seu primeiro mandato não contou, porque aconteceu antes de a nova Constituição entrar em vigência. Assim sendo, por que “4º mandato”? – Evo sabe que a oposição, sobretudo sob comando de seu principal concorrente, Carlos Mesa, reverterá os ganhos socioeconômicos (vide abaixo) dos últimos 13 anos.

Mesa, se puder, porá o país outra vez sob as regras ditas de ‘austeridade’ (não é austeridade: é ARROCHO) impostas pelo FMI, das quais a Bolívia está livre já há 13 anos. Por estar livre dessas regras de arrocho, Evo pôde fazer reformas sociais que não só beneficiaram a população indígena “polinacional” da Bolívia, mas, além disso fez avançar a Bolívia também em termos macroeconômicos, quer dizer, renegociando e parcialmente nacionalizando contratos de venda do gás boliviano, reduzindo a dívida externa e acumulando reservas em moeda estrangeira.

Evo observa atentamente o que está acontecendo nos vizinhos Argentina, Brasil, Chile, Peru e Equador. É bem claro que Evo sair da disputa é deixar as eleições ‘entregues’ às mãos sujas de Washington, para manipular as eleições – como fizeram ‘com sucesso’ nos países aí citados – pôr no poder um candidato favorável aos EUA, a saber, Carlos Mesa. E o país será arrasado. Não é difícil prever o desastro que virá: basta examinar o que já está acontecendo em Argentina, Brasil, Chile, Equador e Peru, onde a miséria e o desemprego, e o crime, associado a esse quadro, são rampantes.

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Um pouco do contexto histórico. Carlos Mena foi vice-presidente no governo do presidente Sánchez de Lozada, chamado “Goni” (de agosto-2002 a outubro-2003), empresário, formado no neoliberalismo da Escola de Economia da Universidade de Chicago. Sánchez de Lozada foi governante ‘infiltrado’ por Washington (falava espanhol com forte sotaque do inglês norte-americano) e claramente representava interesses dos EUA, acima dos interesses da Bolívia. Foi derrubado da presidência em 2003 por protestos populares relacionados ao chamado “Conflito do Gás Boliviano” (“Goni” estava praticamente entregando por preços insignificantes, a empresas estrangeiras, principalmente norte-americanas, as enormes reservas bolivianas de gás natural.

Os confrontos sangrentos que forçaram Goni a fugir para os EUA custaram a vida de 59 manifestantes, soldados e policiais. Goni foi substituído por seu vice-presidente, Carlos Mesa, que se manteve na mesma trilha de Goni, deu andamento às políticas de Goni para o gás natural boliviano. Carlos Mesa, depois de menos de dois anos de governo, também foi forçado a renunciar em 2005, já com o país tomado por protestos e manifestações populares que não cediam.

Assistam também ao documentário Our Brand is Crisis, sobre como Sanchez de Lozada foi levado à vitória nas eleições de 2002, contra Evo Morales, por uma equipe norte-americana especializada em propaganda eleitoral. Mais sobre o documentário, aqui.

Novas eleições ao final de 2005, levaram Evo Morales afinal ao governo – onde permanece, do início de 2006, até hoje. –
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Rápido exame das realizações socioeconômicas do governo e do povo bolivianos bastam para convencer qualquer analista sobre quem realmente pensa pelo povo, e que Evo fez muito bem em insistir na própria candidatura para as eleições de 2019. O Center for Economic Policy Research (CEPR) em Washington, entende que os notáveis avanços que se observam na Bolívia foram em grande medida o resultado de escolhas políticas acertadas, muito mais do que algum boom de commodities.

Nos últimos cinco anos, Bolívia foi o país que obteve mais rápido crescimento econômico na América Latina, cerca de 5,2% em média (o dobro da média latino-americana). O país reduziu a pobreza em 42% e em 60% a pobreza extrema desde 2006, quando Evo assumiu a presidência. O país também pôs fim a 20 anos de ‘governo’ do FMI, depois que Evo determinou a saída do país, dessa infame instituição de Bretton Woods.

Outras conquistas notáveis incluem:

– Aumento de 50% em termos reais do PIB per capita em 2018, comparado aos números de 2005;

– No período 2006-2011, os ganhos do governo relacionados a petróleo e gás aumentaram 7 vezes, para US$ 4,95 bilhões, principalmente por efeito da nacionalização e mudanças políticas a ela associadas. Essa foi a força motriz para que o país alcançasse estabilidade macroeconômica e cumprisse as metas socioeconômicas estabelecidas;

– O desemprego caiu de 7,7% para 4,4.% em 2008 – e permaneceu estável até 2018;

– O investimento público aumentou, com o crescimento econômico do país; a Bolívia é o país com maior investimento, calculado como porcentagem do PIB, de toda a América Latina;

– O investimento em geral chegou a quase 22% do PIB, na média, por ano, nos últimos cinco anos;

– Em 2010, a Bolívia começou a aplicar uma política de “alívio quantitativo” para comprar instrumentos financeiros de propriedade do estado, a saber, bônus e certificados semelhantes de dívidas. Ao final de 2018, o balanço do Banco Central mostrou que 44% estavam investidos em patrimônio público, 12% acima dos números de 2010.

Ainda restam muitos desafios no caminho da Bolívia, que ainda é o país mais pobre na América do Sul, seguido por Guiana, Paraguai, Equador e Peru. Evo sabe que seu trabalho está longe de estar completado – e é absolutamente necessário resistir a qualquer “mudança de regime” forçada pelos norte-americanos. Viva Bolívia! Viva Evo! *******


* Peter Koenig é economista e analista geopolítico, além de especialista em recursos hídricos e meio ambiente. Trabalhou por mais de 30 anos para o Banco Mundial e a Organização Mundial da Saúde em vários locais do mundo, para questões de meio ambiente e água. É professor convidado de universidades nos EUA, Europa e América do Sul. Escreve regularmente para Global ResearchICHRTSputnikPressTVThe 21st CenturyGreanville PostDefend Democracy PressTeleSURThe Saker Blog, the New Eastern Outlook (NEO) e outros sites de internet. É autor Implosion – An Economic Thriller about War, Environmental Destruction and Corporate Greed – ficção baseada em fatos recolhidos nos 30 anos de trabalho para o Banco Mundial em todo o planeta. É também co-autor de The World Order and Revolution! – Essays from the Resistance.

Peter Koenig é pesquisador associado do Centre for Research on Globalization.

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