22/5/2020, Pepe Escobar, Asia Times
As conclusões chaves das Duas Sessões do 13º Congresso Nacional do Povo em Pequim já são de domínio público.
Em resumo: não há meta para o PIB de 2020; déficit no orçamento de no mínimo 3,6% dp PIB; um trilhão de yuan em bônus especiais do Tesouro; taxas/impostos de empresas cortados em by 2,5 trilhões de yuan; o orçamento da Defesa terá aumento modesto de 6,6%; e o governo, em todos os níveis comprometido com “apertar os cintos”.
O foco, como previsto, é pôr a economia doméstica da China, pós-Covid-19, em trilha para crescimento sólido em 2021.
Também previsivelmente, todo o foco da esfera anglo-norte-americana foi dirigido para Hong Kong – como no novo marco legal a ser aprovado semana que vem, arquitetado para impedir subversão, interferência estrangeira “ou quaisquer atos que ponham sob risco severo a segurança nacional.” Afinal, como destaca um editorial de Global Times, Hong Kong é assunto de segurança nacional extremamente sensível.
É resultado direto das informações que a missão chinesa de observadores com base em Shenzhen recolheu, dos tumultos, disparados por farto sortimento de 5ª-colunistas e black-blocs armados, que quase destruíram Hong Kong no verão passado.
Não surpreende que o front de “combatentes da liberdade” anglo-norte-americano esteja lívido. O desafio está lançado. Acabaram-se as ‘manifestações’ pagas. Fim dos black blocs. Acabou-se a ‘guerra híbrida’. Baba [papai] Pequim chegou cheio de novidades.
As três ameaças
É absolutamente essencial localizar as Duas Sessões no contexto geopolítico e geoeconômico incandescente maior da nova Guerra Fria de facto – incluída a guerra híbrida – entre EUA e China.
Concentremo-nos num norte-americano insider: o ex-conselheiro de segurança nacional da Casa Branca tenente-general HR McMaster, autor de Battlegrounds: The Fight to Defend the Free World (Campos de Batalha: a luta para defender o mundo livre), no prelo.
É a versão mais absolutamente explícita do que há em termos de como o, em pentagonês, ‘mundo livre’vê a ascensão da China. Podem chamá-la de visão do complexo industrial-militar-vigilância-mídia.
Pequim, per McMaster, estaria procurando uma política de “cooptação, coerção e dissimulação” em torno de três eixos: Made in China 2025; as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada; e uma “fusão civil-militar” –, em outras palavras o vetor mais “totalitário”, orientado para criar uma rede de inteligência global, para espionagem e ciberataques.
Podem chamar de “as três ameaças”.
Seja qual for a conversa no Departamento de Estado, Made in China 2025 continua vivo [o programa] e operante – mesmo que a terminologia não apareça.
O objetivo a ser alcançado via $1,4 trilhão em investimentos, é (1) lucrar com o conhecimento acumulado por Huawei, Alibaba, SenseTime Group e outros grupos, para projetar um ambiente de Inteligência Artificial contínuo, sem interrupções e saltos. No processo, a China deve (2) reinventar a própria base tecnológica e reestruturar toda a cadeia de suprimento de semicondutores, para torná-la doméstica. Esses dois itens não são negociáveis.
Cinturão e Estrada, em pentagonês, é sinônimo de “clientelismo econômico” e “cruel armadilha de dívida”. Mas McMaster entrega o jogo, ao descrever o pecado capital como “o objetivo de deslocar a influência dos EUA e de seusparceiros chaves.”
Quanto à, em pentagonês, fusão “militar-civil”, trata-se de transferir rapidamente para o exército “tecnologias roubadas em áreas como espaço, ciberespaço, biologia, inteligência artificial e energia”. Nada além de “espionagem e ciber-roubo.”
Em resumo: é essencial “revidar” é contra esses comunas chineses “ainda mais agressivos na promoção de sua economia estatista e modelo político autoritário.”
Fala a diáspora chinesa
À parte essa avaliação binária, muito rasteira, McMaster afirma um ponto interessante: “EUA e outras nações livres devem ver comunidades de expatriados como uma força. Chineses no exterior – se protegidos do contato e da espionagem a favor do governo da China – podem garantir ‘resposta’ interessante contra a espionagem e a desinformação que vêm de Pequim.”
Assim sendo, comparemos essa conversa com os insights de um verdadeiro mestre em diáspora chinesa: o notável professor Wang Gungwu, nascido em Surabaya na Indonésia, que completará 90 anos em outubro próximo e é autor de um delicioso, agudo livro de memórias Home is Not Here. [O lar não é aqui].
Para não chineses, não há melhor explicação do modo de pensar predominante em toda a China:
“Duas gerações de chineses, pelo menos, aprenderam a considerar que é possível que o ocidente moderno tenha ideias e instituições valiosas a oferecer, mas os tumultos que ocuparam grande parte do século 20 também as fizeram ver que as versões ocidentais europeias de democracia podem não ser assim tão importantes para o desenvolvimento nacional da China. A maioria dos chineses parece aprovar políticas que põem a ordem e a estabilidade acima da liberdade e da participação política. Creem que nesse estágio o país precisa dessas ideias, e não gostam de ser regularmente criticados, como se fossem atrasados e incapazes de decidir sobre o próprio destino.”
Wang Gungwu reforça que os chineses pensam de modo muito diferente da trajetória “universalista” do ocidente, e assim chega ao âmago do assunto: “Se a República Popular da China oferecesse via alternativa para a prosperidade e a independência, os EUA (e outros pontos no Ocidente) veriam aquela outra via como ameaça à sua (e dos europeus ocidentais) dominação mundial. Os que se sentem ameaçados fariam então tudo que pudessem, para deter a China. Parece-me que isso é o que a maioria dos chineses creem que os líderes norte-americanos estejam preparados para fazer.”
Nenhuma avaliação feita pelo Estado Profundo dos EUA conseguirá manter-se em pé se ignorar a riqueza da história chinesa: “A natureza da política da China, fosse sob imperadores, senhores-da-guerra, nacionalistas ou comunistas, esteve sempre tão fundamente enraizada na história chinesa, que nenhum indivíduo ou grupo de intelectuais conseguiria oferecer visão nova que atraísse a maioria do povo chinês. No fim, aquela maioria pareceu aceitar a legitimidade da vitória da República Popular da China no campo de batalha, combinada à capacidade para levar ordem e propósito a uma China rejuvenescida.”
O “Longo Telegrama” remix
O procurador federal Francis Sempa, autor de America’s Global Role [O papel global dos EUA] e professor adjunto de ciência política nan Wilkes University, comparou a avaliação da “ameaça” chinesa de McMaster, ao lendário “Longo Telegrama” escrito por George Kennan em 1947, sob o pseudônimo de X.
Aquele “longo telegrama” traçou a estratégia subsequente para conter a União Soviética, completada com a construção da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN. Foi como um ‘plano diretor’ da primeira Guerra Fria.
O atual e rasteiro Longo Telegrama remix pode talvez também ter longas pernas. Sempa, e é mérito seu, pelo menos admite que “as tímidas recomendações políticas de McMaster não levarão ao gradual desmonte nem a suavizar o poder comunista chinês”.
Ele sugere – e o que mais seria? – “contenção”, que deve ser “firme e vigilante”. E reconhece, também mérito seu, que deve ser “baseada num entendimento da história chinesa e na geografia do Indo-Pacífico.” Mas então, outra vez, entrega o jogo – em verdadeiro estilo Zbigniew Brzezinski: o que mais interessa é “a necessidade de impedir que uma potência hostil controle os centros chaves de poder do continente eurasiano.”
Não surpreende que o Estado Profundo dos EUA identifique Cinturão e Estrada e seus ramos, como a Rota da Seda Digital e a Rota da Seda Sanitária por toda a Eurásia, como manifestações de uma “potência hostil.”
O fulcro de toda política exterior dos EUA desde a 2ª Guerra Mundial sempre foi impedir a integração da Eurásia – objetivo agora ativamente buscado pela parceria estratégica Rússia-China. Novas Rotas da Seda que cruzam a Rússia – parte de Putin da Parceria Grande Eurásia – fatalmente se fundirão com Cinturão e Estrada. Putin e Xi voltarão a se encontrar, cara a cara, em meados de julho, em São Petersburgo, para duas cúpulas, dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai, e avançarão nas discussões com maior detalhes.
Pairanto silenciosamente sobre as Duas Sessões, está a compreensão, na liderança chinesa, de que voltar rapidamente a cuidar dos assuntos domésticos é essencial para um novo impulso sobre o tabuleiro de xadrez. Sabem que o complexo industrial-militar-de vigilância-e mídia não poupará golpes, sejam quais forem, e usarão qualquer possível estratégia geopolítica e geoeconômica para sabotar a integração da Eurásia.
Made in China 2025; Cinturão e Estrada – o equivalente pós-moderno da Antiga Rota da Seda; Huawei; o destaque da manufatura chinesa; achados na luta contra o Covid-19 – tudo é alvo. Pois paralelamente, nada – de longos telegramas remix a ruminações azedadas da Armadilha de Tucídides – impedirá uma China rejuvenescida, de atingir seus próprios alvos.*******
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