South America

Como os ganhos socioeconômicos da Revolução Cultural da China alavancaram o boom chinês dos anos 1980s (6/8*)

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Ramin Mazaheri (para The Saker Blog)


“É importante deixar bem claro: a Revolução Cultural da China foi o Grande Salto Adiante** 2.0. A China aprendeu dos próprios erros e aprimorou-se. E deve-se dizer a bem da justiça, que a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) da China, hoje, é um Grande Salto Adiante 3.0; e tão vasto, que está integrando grande parte da Eurásia.”

São quase ganhos socioeconômicos demais, para que eu os liste aqui… Pois mesmo assim a ideia dominante no ocidente é que a Revolução Cultural da China nada teria deixado de ganhos, e só teria resultado em atraso e regressão.

Os chineses sabem bem disso, e essa é a razão pela qual estou discutindo o livro de Dongping Han, indispensável trabalho acadêmico e de investigação: The Unknown Cultural Revolution: Life and Change in a Chinese Village [A Desconhecida Revolução Cultural: Vida e Transformação numa Aldeia Chinesa]. Han examinou atentamente o condado rural de Jimo [ing. Jimo County, na província de Xandong (entre o Mar Amarelo e o Mar de Bohai], onde cresceu, entrevistando centenas de moradores sobre a Revolução Cultural da China e com abundância de registros históricos locais. Han fez-me a gentileza de escrever o prefácio de meu novo livro que acaba de ser lançado I’ll Ruin Everything you Are: Ending Western Propaganda in Red China. [Vou estragar tudo que vocês são. Pôr fim à propaganda ocidental na China Vermelha], que espero que vocês comprem, um exemplar para cada um, e um exemplar para cada um de seus 300 amigos mais chegados.

Quando concluí a Parte 5, a facção rebelde dos Guardas Vermelhos (que desejava uma ditadura do Povo) acabava de, ao cabo de três anos, derrotar democraticamente a facção legalista dos Guardas Vermelhos (que desejava manter a ditadura do Partido) – uma nova geração de revolucionários avançara e, naquele momento assumia o poder. O que foi produzido no tempo que estiveram no poder?

“Desde o início do Grande Salto Adiante, o governo chinês falava de eliminar três fissuras: entre áreas urbanas e rurais; entre trabalho intelectual e manual; e entre operários e agricultores (…) Mas só durante a Revolução Cultural aconteceu de esse projeto ser tomado a sério pelos estudantes, e tão seriamente que abraçaram o projeto como meta concreta da luta.”

Certo é que é extraordinariamente difícil passar por uma revolução no poder e na cultura, tudo numa mesma geração. O Irã tentou acelerar a agenda revolucionária, implementando uma segunda e única outra Revolução Cultural apenas um ano depois de o Xá ter sido deposto; a China esperou 15 anos.

A Revolução de 1949 instalou os coletivos, dos quais o ocidente capitalista-imperialista tornou-se imediatamente inimigo figadal; com os coletivos, vieram as “cinco garantias” (wu bao)” – comida, roupa, combustível, educação para as crianças e funeral digno para os mortos. Foi um sistema de seguridade social revolucionário e sem precedentes, para os chineses rurais. Mesmo assim, a seguridade social garantida aos moradores das cidades era muito, muito melhor, o que gerava ressentimento muito justificado.

Mas não se pode discutir só o primeiro pilar do socialismo – a redistribuição da riqueza. E o segundo pilar – a redistribuição do poder – estava quase completamente ausente na vida da vila chinesa, 15 anos depois da revolução. Vê-se isso bem claramente no fato, relatado por Han, de que só na primavera de 1967 foi realizada uma reunião de massa, em Jimo, para discutir o planejamento e as metas locais para o ano agrícola. “Esse simples ato converteu os aldeões, de seguidores passivos de ordens recebidas, em participantes ativos do próprio projeto.”

Remeto ao anexo matemático dos ganhos da década da Revolução Cultural da China que ofereço na  Parte 1: “Você acabou de ler sobre duas vezes mais comida e duas vezes mais dinheiro para o chinês/chinesa médios; 14 vezes mais cavalos-vapor de energia [horsepower (que equivale a 140 vezes o manpower, a energia do trabalho humano)], 50 vezes mais empregos industriais; 30 vezes mais escolas e 10 vezes mais professores durante a década da Revolução Cultural da China em áreas rurais.

Só é possível avaliar esses ganhos massivos, sem precedentes em áreas rurais, se se aceita que a Revolução Cultural da China sim, conseguiu produzi-los via o empoderamento de trabalhadores/cidadãos. Depois que nos damos conta desse fato, torna-se mais fácil aceitar a asserção primária – e revolucionária – de Han: que o boom que o mundo viu na China pós-1980s foi conseguido sobre os alicerces do capital econômico e humano gerado nas áreas rurais, as quais, em 1980, eram 80% do país.

Ganhos revolucionários em educação, para áreas rurais

A ideia de que a Revolução Cultural da China perseguiu intelectuais é totalmente falsa – a Revolução Cultural da China gerou intelectuais em número 30 vezes maior de escolas e com dez vezes mais professores. “Intelectual” não é só o sujeito com 2 PhDs. – As exigências das pessoas comuns são mais baixas e eram sem dúvidas muito mais sensivelmente menores na China rural dos anos 1960s. A pesquisa de Han, assim, descreve um espantoso salto adiante na educação nas áreas rurais, que aconteceu em todo aquele continente chamado “China”. Perfeito contrário do que a propaganda ocidental nunca se cansa de repetir.

Por que a China era tão atrasada em 1966, que as crianças sequer frequentavam escola? Seria efeito de 17 anos de governo do Partido Comunista Chinês? Porque isso é o que a mídia-empresa ocidental deseja que você repita até se convencer… como se na era pré-socialista não existisse a mesma carência de educação. Não. O atraso tem de ser atribuído ao “Século de Humilhação” colonial que vitimou a China. À parte o colonialismo, por que a revolução não aconteceu em 1600, 1700 ou 1800? A resposta é: porque não aconteceria sem o advento do socialismo.

Os materiais básicos de construção sempre estiveram acessíveis localmente – as comunas construíram coletivamente todas as escolas primárias e secundárias. Mas faltava romper as cadeias da visão capitalista da economia, e instituir o processo democrático socialista para empoderar os cidadãos.

Os recursos para construir escolas não caíram do céu, nem de bancos estrangeiros – as vilas reuniram todos os recursos disponíveis no local e trabalharam coletivamente. É o socialismo.

Onde encontraram professores? Fez-se uma campanha monstro de propaganda, para conseguir que os chineses educados voltassem à China (no caso, ao condado rural de Jimo). Só deu certo, porque aí já operava uma cultura socialista, oposta à cultura individualista. “Essa política, impopular entre muitos professores das escolas governamentais, acabou por ser uma bênção que desceu sobre as escolas médias comunitárias da vila de Jimo”. Essa é outra verdade que o ocidente proibiu como anátema. É a negação da ‘liberdade total’, concordo, mas também é promover a igualdade. O socialismo insiste em que cada um TEM DE RETRIBUIR socialmente o que socialmente lhe tenha sido dado; o ocidente, não; o ocidente diz “doe, se quiser, e só o que sobre na sua casa”. Mas nem isso, porque em seguida a cultura ocidental ensina a nada doar, nada dar, tudo exigir, tudo acumular.

As escolas chinesas da Revolução Cultural da China também puseram fim à ênfase absurda, elitista, anti-intelectual e anti-inteligência, ‘nas provas’. Essa política só foi necessária onde e enquanto os espaços eram muito restritos. Mas na era da Revolução Cultural da China, “Todos os egressos de escolas primárias das sete vilas do condado de Jimo ingressavam automaticamente na escolha secundária, sem qualquer exame ou seleção.”

A celebração capitalista da “competição acadêmica” só existe para ocultar o fato de que o Estado capitalista recusa-se a criar escolas em número suficiente para receber todas as crianças e todos os adolescentes.

Em 1968, Mao tomou uma medida que ainda em 2019 permanece quase inacreditavelmente radical: propôs que operários e agricultores se envolvessem diretamente na educação; em outras palavras, combateu contra o elitismo tecnocrático na educação do povo. Rapidamente o que se viu foi uma revolução nos currículos escolares – e revolução inegavelmente democrática.

Do ponto de vista das crenças chinesas tradicionais, permitir que agricultores e trabalhadores sem educação formal ou com pouca educação formal liderassem uma reforma na educação era ofensa grave. Como os menos educados organizariam os mais educados? Mas, no fundamento, era importante questão filosófica. A crítica expunha a arrogância e a estreiteza de visão da elite culta da China, para tudo que se relacionasse ao conhecimento. Apesar de operários e camponeses não terem educação formal, tinham conhecimento prático e visão fundamentalmente diversa sobre educação. Encararam e superaram os vieses e preconceitos nas escolas e na sociedade tradicional chinesas, porque sentiram que tinham uma grande missão a cumprir, nas reformas da educação pública para todos. (…) Nunca cederam nem às risadas nem às ofensas e agressões. E continuaram a trabalhar com alunos e professores.”

Como Han relata, os camponeses aos poucos passaram a ser mais respeitados, precisamente porque trabalhavam com professores e alunos. Esse é o processo revolucionário, e é uma via pela qual se reduzem diferenças culturais entre campo e cidade – contato estreito duradouro (se necessário, obrigatório e forçado).

Assim se deu adeus aos livros didáticos redigidos por uma pequena elite educacional que vivia em Pequim – os locais criavam novos currículos e livros-texto, uma espécie de demonstração ao vivo que que socialismo é “planejamento centralizado”, mas “controle local e implantação local dos projetos”.

O que mudou nos currículos escolares? Foram introduzidas disciplinas como contabilidade e finanças domésticas, matemáticas ‘na vida real’; os alunos tinham aulas de ciências da agricultura, não em classe, mas nas plantações, com os agricultores; arquitetura e desenho de máquinas, das mais simples às gradualmente mais complexas, sempre com vistas aos serviços das plantações e de pequenas indústrias. Física, sempre a partir de bombas de irrigação, por exemplo, e outros instrumentos/ferramentas reais: tudo primeiro prático e próximo, e só depois teórico-analítico distante. Dada a miséria em que viviam as comunidades agrícolas, o acesso ao conhecimento com visível utilização prática imediata teve efeito enorme e imediato nas indústrias rurais nascentes e nas fazendas recoletivizadas de depois do Grande Salto Adiante.

Pode-se falar de conversão da ciência ao socialismo – a ciência ao alcance das massas. O oposto da demanda capitalista por ‘inovação’ (não interessa a utilidade, desde que seja ‘novo’ no mercado) e crescimentoDado que a China estava cheia de socialistas revolucionários, as mudanças introduzidas na educação pouco tiveram a ver com o que se esperaria encontrar em reformas ‘à ocidental’. Nada que fizesse lembrar, nem de longe alguma modalidade de “pós-graduação em business para as massas”. As coisas foram obviamente movimentadas na direção de promover pensamento e ação com interesse coletivo claro; o lucro, como se sabe, nada tem de coletivamente naturalmente aproveitável.

Crucialmente importante, decisiva, essa foi a via pela qual a Revolução Cultural gerou o capital humano sem o qual o boom dos anos 1980s seria impossível. Como se poderia sonhar com o boom chinês pós-1980, se o capital humano se reduzisse a um bilhão de camponeses e trabalhadores manuais analfabetos? Ter construído esse capital humano – mediante ênfase planejada e foco na população rural – é a principal e ignorada ou negada, realização da Revolução Cultural. E o quanto o ocidente tem a aprender dos chineses, só no quesito fim do desperdício disseminado de potencial humano na tal ‘divisão entre campo e cidade’, ainda vigente em 2019!

“Houve uma tendência, durante a Revolução Cultural, de prestigiar mais o trabalho físico que o aprendizado acadêmico; efeito disso, muitos estudantes foram submetidos a excesso de trabalho físico. Mas o mix correto de trabalho acadêmico e trabalho físico sempre variou muito de local para local e de momento para momento (…) Os objetivos dessas atividades eram aumentar a renda anual da escola e desenvolver nos estudantes um amor pelo trabalho braçal, físico.”  Ah, sim, sim! As escolas chinesas que ensinavam socialismo ‘prático’ também cuidaram de ensinar seus alunos a ganhar dinheiro, porque ganhar dinheiro era indispensável à sobrevivência das próprias escolas.

Se há coisa que separa homens de meninos, e mulheres de meninas, é a capacidade para trabalhar ao sol ou chuva ou neve, trabalho físico. Quem tenha amadurecido sem ter aprendido a trabalhar duro e a conhecer o valor do que faz, que se prepare para vida bem triste, porque da maturidade até a velhice a vida humana vai-se tornando mais insatisfatória a cada dia. A ideia de que escolas ocidentais não ensinem isso e não preparem para a velhice, parece loucura. Mas fato é que não ensinam mesmo! Sem dizer que esse trabalho físico, em vez de horas sentados em salas de aulas só ouvindo, seria como a felicidade de todos os adolescentes, rapazes e moças, sair da sala e se movimentar.

Gostem ou não e concordem ou não, Han relata que na primeira metade da década dos 1970s nas escolas secundárias ocidentais eram apenas 6 horas por semana de trabalho não acadêmico, cerca de 1/7 de todo o período de permanência na escola. De minha parte, absolutamente não faço ideia de como os líderes criarão políticas que respeitem e ajudem a classe trabalhadora, sem que estudantes e professores jamais, em toda a sua existência tenham pelo menos visto, de perto, um trabalhador ou um camponês.

Mais uma vez, esses jovens alunos de escolas secundárias chinesas seriam o capital humano do qual se fez o crescimento explosivo no desenvolvimento rural, até hoje, inclusive, e que é tão claramente visível para todos.

Han entrevistou um ex-professor: “Citou três grandes realizações das reformas na educação em Jimo. Primeiro, escolas rurais construídas durante as reformas treinaram grande número de jovens locais, em conhecimentos e práticas industriais e agrícolas, os quais tiveram impactos de longo prazo no desenvolvimento de áreas rurais. O desenvolvimento econômico em Jimo foi como consequência desse conhecimento prático. Segundo, a reforma educacional começou a alterar o modo como os professores até ali haviam considerado os agricultores. Quando foram obrigados a participar em algumas modalidades de trabalho manual, físico, aprenderam a respeitar os moradores de pequenas vilas e outros trabalhadores com os quais jamais haviam tido qualquer contato. Terceiro, empoderaram também os moradores das vilas. Depois de trabalharem lado a lado, os agricultores deixaram de ver a elite educada como se chegasse envolta em alguma espécie de aura mística.”

Todas essas, não tenho dúvida, são questões universais: a Revolução Cultural tinha o objetivo de tocar em todas elas; e esse processo foi, sim, democrático e revolucionário.

Han sobre a suspensão da universidade em 1966, evento ao qual tanto se dedicam especialistas ocidentais tecnocratas urbanos e elitistas:

Do ponto de vista dos indivíduos cujas esperanças de obter formação universitária formal foram destroçadas, essa reforma do sistema de admissão à universidade foi profundamente frustrante. Mas do ponto de vista do desenvolvimento rural, essa medida, que foi parte da reforma da educação, como uma transfusão de sangue para um doente, trouxe conhecimento e competências que deram nova vida às áreas rurais. (…) Todos os alunos passaram a ter de trabalhar em áreas rurais ou numa fábrica durante pelo menos dois anos, antes de poder candidatar-se à universidade. O desempenho acadêmico não era o único critério para seleção de candidatos. Os alunos também tinham de provar desempenho satisfatório no trabalho da pequena agricultura, se aspirassem a ser selecionados para um lugar na universidade. A partir de 1976, alunos das escolas de segundo grau em áreas rurais passaram a ter de retornar às vilas natais depois de formados, para trabalhar com os aldeões cujo trabalho coletivo os haviam posto e mantido na universidade.”

Aí está. É modo drasticamente diferente do tom “sonhos frustrados” que se ouve no ocidente, no que tenha a ver com a Revolução Cultural, não é mesmo?

É também padrão drasticamente diferente para chegar à universidade: boas notas e bons resultados no trabalho, versus boas notas e toneladas de dinheiro (ou famílias influentes etoneladas de dinheiro).

É também filosofia drasticamente diferente: esses felizes universitários chineses foram levados da escola primária à universidade por dinheiro público acumulado nas pequenas vilas; assim sendo tinham o dever de voltar à sua pequena vila, “para retribuir o esforço aos aldeões que os mandaram para a universidade”. Nada disso jamais se viu no ocidente capitalista-individualista, embora também aí o dinheiro público acumulado “graças ao sacrifício das pequenas vilas” continue a mandar tanta gente para as universidades.

Han demonstra que uma média de 85% dos moradores que deixaram as vilas do condado de Jimo para cursar universidades retornaram à vila natal. “Esses estudantes tornaram-se os novos professores locais, os novos médicos e os novos trabalhadores e técnicos qualificados dos quais em seguida dependeria o desenvolvimento da China. A reforma do sistema de admissão à universidade e o movimento de forçar a educação urbana para fora das cidades rompeu o círculo vicioso na educação chinesa” (negritos meus).

Han também explica o modo como esses jovens urbanos educados serviram como ponte cultural e social muito real entre as áreas urbanas e rurais – precisamente o que tanta falta faz nos países ocidentais hoje, e causa chave da desigualdade que só aumenta entre a cidade e o campo. Negar a alguém o exercício de um pressuposto direito individual (garantido efetivamente só a quem seja branco e de classe média alta no ocidente, como se vê nas populações universitárias desse lado do mundo) é anátema no ocidente. A China aí está para ensinar que foi medida socialmente necessária e produtiva, com vistas a criar condições básicas para reduzir as desigualdades sociais.

Acredito que o ponto de vista de Han – relacionado diretamente ao ponto de vista dos chineses criados naquelas aldeias – é altamente revelador em termos de fazer ver o quanto houve de radical nas reformas radicais introduzidas pela Revolução Cultural na China. Por isso tanto me alegra voltar a elas e divulgá-las.

Os benefícios são tão óbvios e tão amplos, que tenho certeza de que muitos ocidentais começarão a pensar sobre como podem aplicá-las também em seus sistemas não socialistas. Mas não será fácil. Só muito dificilmente conseguirão fazer no ocidente o que a China fez para os chineses, porque serão ‘acusados’ do ‘crime’ de “socialismo”.

Uma revolução na economia rural e, assim, na economia nacional e, na sequência, na economia global

Não esqueçamos que a assumida ênfase que a Revolução Cultural deu ao rural sobre o urbano (já revolucionária por ela mesma, e subavaliada na URSS), também era e é exigência de qualquer concepção de democracia: a China em 2015 já era 56% urbana; mas no final de 1980 essa porcentagem mal chegava a 20%. A primazia que a URSS deu a um partido de vanguarda, contra qualquer ditadura popular democrática, com certeza não conseguiu, depois de 1991, manter desfraldada a bandeira do socialismo.

Não é exagero dizer que a Revolução Cultural levou a Revolução Industrial para dentro da China rural. – Sim. Porque teve esse nível de efetiva importância.

“Durante a Revolução Cultural, a produção agrícola mais que dobrou, mas, também muito impressionante, a indústria rural foi, de ‘inexistente’, a 36% da economia do condado de Jimo; e, isso, dados os mesmos desenvolvimentos: cultura política modificada para reforçar o empoderamento, a organização coletiva e a transformação rápida, na direção desejada, da educação, gerou e distribuiu os recursos de pensamento necessários para compreender e adotar técnicas modernas.”

Não é fórmula difícil, nem está supostamente absurdamente construída sobre alguma inexistente “mágica do mercado”.

No início dos anos 1960s, Han relata que havia apenas 10 empresas industriais rurais, que empregavam 253 pessoas; em 1976, eram 2.557 empresas no condado (2,5 por vila), empregando 54.771 pessoas.

“Mais importante que isso, as reformas educacionais ‘forneceram’ às indústrias locais jovens funcionários com boa formação técnica e cultural, que já haviam aprendido na escola o necessário know-how técnico.”

Claro que não se trata só de ‘formação tecnológica’: sempre se trata de quem constrói e orienta a formação e o trabalho, seja qual for.

Acho que leitores em países em desenvolvimento devem buscar nisso informação e inspiração. Investimento estrangeiro (e alianças desiguais com empresas de capital não nacional local) é a única solução de que o ocidente cogita para problemas semelhantes. Mas a solução realmente efetiva para construir uma indústria efetiva competente para promover o desenvolvimento local é e sempre será a educação e o empoderamento locais.

Han conta como agricultores, de 1966 a 1976, frequentemente com ferramentas simples, construíram mais reservatórios e projetos de irrigação do que todos os que se construíram antes e depois da Revolução Cultural, somados. Onde estaria a China em 2019 sem todo o desenvolvimento econômico do período da Revolução Cultural?

Vê-se também que dentre os catalisadores chaves para essas mudanças estão a cooperação, o compromisso e o desapego revolucionários, de inspiração socialista. O ocidente só conhece a guerra de defesa, como único meio concebível para mobilizar ações e empenho coletivo desse tipo – com o que se pode avaliar a importância praticamente nenhuma que o capitalismo atribui à vida dos cidadãos. Han relata o processo pelo qual, quando um negócio alcançava dimensões predeterminadas, a aldeia o ‘encampava’ como propriedade de todos – anátema, claro, no capitalismo.

Quem foram os chineses mais amplamente libertados pela Revolução Cultural? Mulheres e crianças.

Mulheres e crianças foram libertadas do serviço tedioso de trituração e moagem de grãos (porque em 1965 o condado rural de Jimo ainda processava o próprio grão à maneira antiga. “Em 1976, praticamente todo o trabalho das granjas e fazendas foi mecanizado.

A década da Revolução Cultural viu aumento de 1.800% no número de motores a diesel; de 1.600% no número de motores elétricos; de 700% no número de moinhos; de 5.100% em outras instalações para moagem; e de 13.200% no número de irrigadores – tudo isso em apenas 10 anos. São números de videogame. Comparem-se esses números e a “Década Perdida” da Eurozona (ainda não plenamente examinada e quantificada), com aquele crescimento de 0,6% na economia, de 2008 a 2017.

Para leitores em países em desenvolvimento, com populações rurais significativas – essa realidade talvez pareça revolução inacreditável. Pois aconteceu. As implicações da Revolução Cultural sobre a Índia – país que é 70% rural – foram óbvias, fascinantes, muito bem estudadas e adotadas na Índia.

E o crescimento apareceu, apesar da pior e mais prolongada estiagem em Jimo em várias décadas – a seca de 1967-1969. Implica reconhecer que a Revolução Cultural foi bem-sucedida onde o Grande Salto Adiante do presidente Mao fracassou.

“Naqueles dez anos, Jimo enfrentou calamidades naturais que não vieram nem em menor número nem menos graves que em décadas anteriores. Ao todo, foram quatro secas severas, quatro graves inundações, quatro tufões, nove trombas d’água e três graves pragas de insetos. Mesmo assim, a produção agrícola cresceu rapidamente e regularmente.

A Revolução Cultural também marcou um retorno a grandes projetos econômicos coletivos – que desde o Grande Salto Adiante não haviam voltado a ser tentados. A grande diferença dessa vez foi que as decisões sobre produção não chegavam de cima para baixo, produzidas por autoridades de altíssimo nível. O sucesso, nesse caso foi efeito direto de empoderamento democrático socialista ampliado, que a Revolução Cultural favoreceu:

“Depois do batismo na Revolução Cultural, os agricultores recusaram-se a seguir cegamente quaisquer políticas que lhes chegassem de cima; nada acontecia, a menos que os camponeses estivessem realmente persuadidos de que uma ou outra política faria avançar efetivamente os padrões de vida da população.” Han relata como, no que tivesse a ver com especialistas do Partido: “Mas os agricultores não eram obrigados a ouvir o que [especialistas do Partido] tivessem a dizer. Na verdade, há muitos registros de agricultores que expulsavam quadros partidários, das suas reuniões” – o que seria impensável, impossível, antes da Revolução Cultural.

É importante deixar bem claro: a Revolução Cultural foi o Grande Salto Adiante 2.0. A China aprendeu dos próprios erros e aprimorou-se.

Deve-se dizer a bem da justiça, que a Iniciativa Cinturão e Estrada da China, hoje, é um Grande Salto Adiante 3.0, e tão vasto, que está integrando grande parte da Eurásia.

Pode-se ver a transição, de uma China onde o partido da vanguarda era tudo – como os trabalhadores da indústria em Petrogrado, em 1917 – , para um socialismo melhor, porque empoderou democraticamente os trabalhadores/cidadãos. Não deve surpreender ninguém que tenha funcionado tão bem – o socialismo é algo que simplesmente, de tão novo, ainda está em evolução e crescimento.

É erro grave tratar o Marx do século 19 como apóstolo divino; é erro, é absurdo e é garantia de fracasso. Na via inversa, o capitalismo-imperialismo é velho de 300 ou de 3.000 anos (dependendo da definição com que você opere); teve todo esse tempo para crescer, e cresceu. Não surpreende que tenha culminado em seu formato maximamente impiedoso, gerador de desigualdades – o capitalismo neoliberal que temos hoje.

Se o Grande Salto Adiante foi esforço histérico de felicidade para varrer do mundo, rapidamente, mais de um século de atraso imperial e/ou fascista, os moradores do condado de Jimo decidiram, em calma e coletivamente, o que queriam obter. E fruto dessa operação é o status impressionante da China em 2019.

Revolução na atenção à saúde no campo – que apareceu na China da Revolução Cultural, pela primeira vez no mundo

Mais uma vez, foi o trabalho de construir capital humano durante a Revolução Cultural, contribuindo para o boom dos anos 1980s. Doenças e enfermidades – de adultos e dos filhos, amigos e familiares – não são só pessoalmente debilitantes, mas, além disso, também causam danos a toda a economia.

A Revolução Cultural acelerou o processo de denúncia do programa que só garantia atenção à saúde de chineses urbanos – que já era aprimoramento em relação aos dias de antes de 1948, mas claramente não podia ser objetivo acabado da revolução socialista.

Mao começou por denunciar os hospitais como aschengshi laoye yiyuan (hospitais exclusivos para lords urbanos).”

Graças à renovação que a Revolução Cultural provocou na mentalidade coletiva: “Cada morador de vila pagava 50 centavos anuais à clínica da vila, que então oferecia aos moradores serviço médico rudimentar por um ano inteiro. À altura de 1970, 910 vilas – 93% de todas que havia – já haviam montado as próprias clínicas e mantinham políticas de atendimento rudimentar para moradores. Os doutores rurais “de pés descalços” que trabalhavam na clínicas de vilas eram praticamente todos jovens da própria vila, que retornavam depois de completada a escola secundária onde recebiam treinamento médico básico.” Pode não parecer muito, mas é melhor que os ‘bruxos’ de antes – muito frequentemente denunciados por tragédias provocadas por falsas práticas de vodu. – E Han registra que os “médicos de pés descalços” trabalhavam sob a supervisão de médicos formados.

“Se um morador de uma vila adoecia ou passava a precisar de internação, a vila tentaria pagar as contas médicas. Não sendo possível, a comuna ajudaria. Se os custos fossem altos demais para a vila e para a comuna, o hospital deixava de cobrar (…) É verdade que o sistema das cooperativas médicas rurais era de baixa qualidade. (…) Mas foi o melhor sistema de atenção médica que os aldeões do condado de Jimo jamais haviam conhecido, e garantia importantes serviços e paz de espírito às pessoas.”

Também nisso se criou capital humano, que pôde ser preservado, o que permitiu que homens e mulheres chineses florescessem, afinal, no século 21.

Revolução no respeito à cultura, não uma revolução pró violência contra a cultura

Num episódio que mostra o quanto a igualdade social de gênero está muito mais avançada sob o socialismo, que sob o regime capitalista (assim como, também, a igualdade do reconhecimento a diferentes etnias), Han conta de dois gêmeos que abusaram das esposas um do outro e foram publicamente expostos, bem como a mãe dos gêmeos, porque se acreditava que tivesse sido a instigadora do abuso.

Han também discute algo que o ocidente ‘denuncia’ com fúria ainda maior que a miséria humana que se teria mantido inalterável: os tesouros culturais que teriam sido destruídos no início da Revolução Cultural, quando se atacaram os “quatro velhos”: velhos pensamentos, velha cultura, velhas tradições e velhos hábitos.

Han conta como os salões de cerimônias de funerais e casamentos foram as principais vítimas no condado de Jimo – quando, por diferentes modos, o Partido Comunista Chinês tentava substituir o politeísmo antigo, pelo comunismo.

Mas o que Han explica é que, conforme a Revolução Cultural avançou e os estudantes em áreas rurais passaram a ter mais recursos, tempo e passaram a ser mais respeitados, passaram também a poder fazer viagens subsidiadas para fora da própria vila natal. Em muitos casos, era a primeira vez que estudantes camponeses muito pobres conseguiam ampliar a própria visão de mundo. Rapidamente se deram conta do erro que era destruir, por ignorância, genuínas peças de arte.

“No condado de Jimo, a Revolução Cultural passou por reviravolta dramática depois que muitos jovens retornaram de viagens a Pequim, onde descobriram novas perspectivas. Emergiram então as associações de massa independentes (Facção Rebelde da Guarda Vermelha) e teve fim a destruição dos si jiu (quatro velhos).”

Parece que a lição foi aprendida rapidamente – os “quatro velhos” deviam ser vistos como relíquias fanadas, e até protegidos como parte da herança cultural da China; já não se trataria de os temer e por isso de os destrur, porque ídolos não têm poderes (mensagem de Abraão e do monoteísmo). Esse ponto de vista pode ser difícil de compreender, quando os “quatro velhos” foram impingidos a você ao longo de toda a vida, e você aprendeu a crer que fossem entidades temíveis e dominadoras, não os reles tigres de papel que são.

A prática das viagens faz lembrar processos semelhantes, de viagens patrocinadas pelas forças Basij iranianas.*** Jovens pobres recebem meios para viajar pela primeira vez para fora da própria vila natal, como meio, muito bem-sucedido, de ampliar sua visão de mundo.

Essas viagens também acentuam a consciência de classe, expondo as grandes diferenças entre campo e cidade: “Os jovens sentiam-se em certa medida intimidados, mas também indignados, ao descobrir a diferença nos padrões de vida entre áreas urbanas e áreas rurais do país.”

Não apenas se constituíam novos relacionamentos, mas também se acumulava inteligência política genuína sobre a situação da China de então, principalmente entre os camponeses.

“Foi nessas viagens que Lan Chengwu e seus camaradas souberam da corrupção que se alastrava entre os quadros rurais do Partido. A indignação contra os tuhuangdi(imperadores locais) das vilas, que saqueavam os depósitos coletivos de grãos, dormiam com esposas de outros funcionários e assassinavam quem se atrevesse a denunciá-los assustaram Lan e seus companheiros e aprofundaram a determinação deles para apoiar a Revolução Cultural.

Hoje muitos iranianos ainda protestam contra as viagens subsidiadas para membros das forças Basij, mas também eles ainda não avaliam adequadamente os muitos benefícios que trazem aos iranianos mais pobres.

A dialética econômica essencial da Revolução Cultural deve ser revivida em 2019

“As reformas que a Revolução Cultural fez na educação geraram, para as áreas rurais grande número de jovens bem formados. Na escola, aprendiam saberes úteis para as áreas rurais, e ao voltarem às vilas natais, depois de concluídos os estudos, podiam dar bom uso ao que haviam aprendido (…). Sem o grande número de jovens bem formados que voltavam às vilas, nenhum dos experimentos e a mecanização levada a cabo no interior da China teriam sido sequer imagináveis (…). Diferentes dos jovens analfabetos da geração anterior à deles, os agricultores chineses que chegavam de volta às suas vilas natais traziam as ferramentas conceituais indispensáveis para modernizar a produção.”

Esse é o capital humano sobre o qual o boom econômico na China pós-1980 pôde ser erguido, e esse, afinal, é o principal legado da Revolução Cultural. Ao promover, como exige o socialismo, a qualificação educacional do chinês médio e pobre, em vez de só consagrar o excepcional, como faz o capitalismo, a China tornou-se a superpotência que é hoje.

Han demonstra – de modo conclusivo, impressionante e crucialmente decisivo – que

“A construção da indústria rural no condado de Jimo, contudo, começou como efeito da Revolução Cultural, que já estava em andamento e já alcançara fortes avanços bem antes do início das reformas rurais de Deng [Xiaoping].

E essa é a razão pela qual o livro de Han é tão importante, especialmente para países em desenvolvimento que tenham grandes populações rurais.

A mentalidade socialista/coletivista da China ampliou os efeitos da educação socialista e de democratização; no ocidente, as mudanças e reformas na educação, de inspiração liberal, em nenhum caso mostraram efeitos igualmente espetaculares em países recém integrados ao imperialismo.

Por fim, a “repatriação forçada” de populações rurais depois de os estudantes concluírem os estudos, e de alguns habitantes das grandes cidades para o interior do país, foi elemento catalisador da renovação da China rural e, assim, da renovação nacional; foi como indispensável “transfusão de sangue” nas palavras de Han. Essa política nunca será viável no ocidente individualista, mas sem dúvida deve ser considerada por países mais sensíveis.

A era da Revolução Cultural na China levou a resultados tão espetacularmente bem-sucedidos do ponto de vista econômico e de democratização, que o ocidente permanece obrigado a ignorá-la ou a distorcê-la até o total desfiguramento. O projeto chinês permanece como contraste absoluto frente ao modelo neoimperalista neoliberal controlado pelo ocidente, modelo que só faz aprofundar as desigualdades e os descontentamentos nos vários países onde se tenta implantá-lo a qualquer custo.

As áreas rurais da China não precisaram de investimentos a serem obtidos de banqueiros privados a custos altíssimos, nem de reformas na educação que visassem a abrir ainda mais o país para… banqueiros privados, a custos altíssimos.

E no país onde você vive? Como estão as coisas? *******

* Esse é o 6º de uma série de oito artigos, nos quais examino e comento o livro de Dongping Han, The Unknown Cultural Revolution: Life and Change in a Chinese Village no qual se redefine radicalmente uma década que já se provou ser não só a base do atual sucesso da China, mas, também, um farol de esperança para países em desenvolvimento em todo o mundo. Aqui vai a lista de artigos planejados. Espero que lhes sejam úteis na luta de nós todos, pela esquerda.

Parte 1ª – A much-needed revolution in discussing China’s Cultural Revolution: an 8-part series
Parte 2ª – The story of a martyr FOR, and not BY, China’s Cultural Revolution
Parte 3ª – Why was a Cultural Revolution needed in already-Red China?
Parte 4ª – How the Little Red Book created a cult ‘of socialism’ and not ‘of Mao’
Parte 5ª – Red Guards ain’t all red: Who fought whom in China’s Cultural Revolution?
Parte 6ª – Aqui traduzido
Parte 7ª – Ending a Cultural Revolution can only be counter-revolutionary
Parte 8ª – What the West can learn: Yellow Vests are demanding a Cultural Revolution

** Sobre “Grande Salto Adiante”, ver https://www.marxists.org/glossary/events/g/r.htm (ing.). Encontra-se um bom tradutor online, apenas para ajudar a ler, em https://www.deepl.com/translator [NTs].

*** As forças Basij, são unidade paramilitar de voluntários, fundada por ordens do Aiatolá Khomeini em novembro de 1979, como uma espécie de exército iraniano de reservistas, subordinado ao Corpo de Guardas da Revolução Islâmica [NTs, com informações de Wikipedia].

QNavy
QNavy is a pool of 3 former Navy Officers, U.S. Navy & French Navy, who served proudly their countries, specialized in conflict analysis as per their respective skills & experience on Special Ops. #NavyVetUnited

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